quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

fecha a conta

31/12
Cidade vazia
O ano todo
Por um só dia


2008
que
o

da
am
pu
lhe
ta
lhe
se
ja
le
ve

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

my condition




voar com a asa ferida?
abram alas quando eu falo.
que mais que eu fiz na vida?
fiz, pequeno, quando o tempo
estava todo ao meu lado
e o que se chama passado,
passatempo, pesadelo,
só me existia nos livros.
fiz, depois, dono de mim,
quando tive que escolher
entre um abismo, o começo,
e essa história sem fim.
asa ferida, asa ferida,
meu espaço, meu herói.
a asa arde. voar, isso não dói.


Paulo Leminski

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

dias de (bom) big lebowski



(ou "breve relato de uma semana de folga")

Voar sobre a cidade com a barba suja de White Russian.
O chinelo nos pés a desafiar a gravidade dos homens sérios.
Bermuda florida, papagaios, maritacas e margueritas.
No café-da-manhã? Por supuesto que si! Como no!
Qual o problema, dona? Como vai o senhor? E a família?
Cair fora, pular fora, dar um tempo, dá um tempo, cara!
Adiós San Pablo! Bienvenido San Pablo!
Papo furado, papo pro ar, óculos escuros e piscina.
As grandes questões da humanidade cabem em uma garrafa.
As grandes manchetes não preenchem um verso.
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem, Caetano.
Desencanto, desacato, descaso, entrega e recusa.
Sinto muito, não foi daqui que pediram vida pré-fabricada.
Passe outra hora. Hasta la vista! Depois do Carnaval, quem sabe...
E que sejamos losers de nós mesmos neste final de ano.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

adeus batucada




O gato preto me espreita ao pé da escada
Sabe que sou fraco como uma folha
Indefinido, volátil, vento, brisa
Ressentido, retrátil, um gato pardo

O gato preto não move um músculo
Seus olhos de noite furam meu peito
Ameaçam minha integridade mental
Arregaçam segredos, riem do meu fardo

Ao pé da escada o gato preto espera
Guarda a porta do meu inferno
Desce, desce, desce, desce rapaz
Está feliz sobre a verdade o felino

Preto sujo gato paciente e ridículo
A me esperar como Cérbero
Lambe as patas ùmidas de cidade
E me diz, sorrindo: Bem-vindo!

O gato cruzará meu caminho, penso
Tenho ímpetos de chutar sua cara
Esmagar suas tripas, comer seus miolos
Fritar suas patas, trucidar sua raça

Mas ele se encolhe, recolhe as garras
Está molhado de orvalho e lágrimas
Se aninha em meu colo de cão velho
E seguimos juntos pela madrugada

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

velho oeste

No fogo-cruzado
O olhar perdido
Um amor alvejado

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

sem controle



"Os Estados Unidos lutam contra a depressão"
E a gente dando porrada sozinho, hein!?

(com a mais nova do Portnoy)

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

segue o baile



E atenção, senhoras e senhores, dezembro vem aí, está prestes a adentrar o salão, onde irá anunciar solenemente o final deste ano! Please, Duke, toque Satin Doll para um momento tão aguardado como este! Vejam, lá vem ele, impecável!
_Nem parece aquele mês úmido e cheio de luzinhas de sempre_, comenta uma senhora.
_Isso sem falar nos perus e espumantes de quinta_, completa a outra.
_Vamos ver se dessa vez ele desfaz a má impressão do ano passado..._, diz o pessimista na primeira mesa.
_Tenho certeza de que tudo dará certo, será como se estivéssemos em New York City, mas sem a neve, claro_, arremata o otimista.
Adeus, novembro. Descanse, meu velho, e vê se volta mais solar e bem-humorado em 2009.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

souvenir

Miçanga que caiu do corpete da puta
Chiclete colocado à roupa
Pedra britada que moto espirrou na calçada
Duas balas de banana no bolso amanhecidas
Três tampinhas de cerveja na mochila esquecidas
Pó de paçoca
Clips
Paulo José, assessor
Sinara Silva, diretora
Visa Crédito, segunda via
Uma moeda de cinco centavos
Cachimbo de fumar crack na esquina da Conselheiro Nébias com Barão de Limeira
Homem aparentando 40 anos, cabelo penteado, três por quatro, na São João com a Aurora
Pede a Deus e serás recompensado, mas teme seus desígnios e respeita tuas manifestações
Dá licença, moço, tô vendendo estes deliciosos produtos, pode pegar, sem compromisso, é para ajudar no tratamento da minha irmã com câncer
Dentista 24 horas
Leio o futuro
Compro ouro
Aninha, morena safada
Merda na sola do sapato
Merda de pombo na cabeça
A felicidade a seu alcance
Troque nos postos autorizados
Financiamos em até seis vezes
Não perca
Não vacile
Não se atrase
Não pense duas vezes

Pequenas lembrancinhas
no escombro da civilização

chora chuva

Ah, Santa Catarina
Pare de imitar
Olhos de Katrina

terça-feira, 25 de novembro de 2008

os amigos não morrem jamais

OS FEIOS NÃO MORREM JAMAIS

Morreu o “cão mais feio do mundo”, dizem as páginas e as folhas, referendando um estranho concurso da Califórnia. A criatura possuía três pernas e era cego de um olho, apega-se o noticiário para justificar o mal-assombrado epíteto.
Seu batismo era Gus.
Segundo a suposta dona, Jeanenne Teed, ele tinha tumor de pele, doença que o levou a perder uma das pernas. O prêmio de US$ 16 mil conquistado no concurso seria usado para o tratamento de saúde do animal, informam todas as agências. O olho foi ferido durante uma briga com um gato.
Não sei se ando frágil, cuidado vidros e cristales, mas deu dó, senhor piedade, desta pobre alma que se vai. Não sei se é p q a minha gata Déli (de Delicia, diliçi, apelido by Maria/Jojô Gatis) caiu domingo da janela –depois de um dia de silêncio está lindamente carente como sempre e sonha com peixes-patês nos oceaninhos dos seus ojos azules.
Viejo Gus, este mal-diagramado que vos escreve recomenda um verso do Fernando Catatau, à guisa de oração e subida ao paraíso dos cães: “um defeito de Deus é sempre perfeito”.Sim, hay banda, titio Lynch, e o nome de umas das melhores do momento atende pelo batismo de Cidadão Instigado, sob o comando do citado moço.
Corta de Catatau para um dos seus. Sérge Gainsbourg, por supuesto: “A beleza é passageira, a feiúra é para sempre”.
Ninguém acaba com as baratas, e, como diz o jazz interior do meu amigo Bombig, Thelonious continua tocando Solitude.
Lloro un poco (que o Word teima em corrigir para um poço) por ti, viejo Gus, que minha lágrima seja pelo menos uma pulga.

(Xico Sá no Carapuceiro)

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

dias de bird em LA-retrospectiva 2008

Ano de frio
A vida
Por um fio

Ano de merda
A vida
Uma incerta

Ano de bosta
A vida
Na reta oposta

Ano opaco
A vida
Um grande saco

Ano triste
A vida
Dedo em riste

Ano bobo
A vida
Um ovo oco

Ano escroto
A vida
Um arroto

Ano fraco
A vida
Um traço

Ano magro
A vida
Um trago

Ano escuro
A vida
Futuro?

Ano ausente
A vida
Só presente?

Ano lascado
A vida
Só passado?

Vida
Ida sem vinda
Lida sem lide

Ano perdido
Ano vivido

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

dias de parker em los angeles



Perfurada a prosa
O verso exposto

A poesia põe
Os dedos no osso

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

saúde pública

Baratas, muitas
E o Thelonious tocando
It Don´t Mean a Thing

Há mais baratas nas ruas
E o Thelonious tocando
Sophisticated Lady

Cresceu o número de baratas
E o Thelonious tocando
The Man I Love

Ninguém acaba com as baratas
E o Thelonious tocando
Solitude

As baratas vão dominar tudo
E o Thelonious tocando
Ruby My Dear

Baratas devorando bebês
E o Thelonious tocando
Blue Monk

Baratas gostam de bananas
E o Thelonious tocando
Round Midnight

Baratas na prefeitura
E o Thelonious tocando
Mood Indigo

Baratas na sacristia
E o Thelonious tocando
Caravan

Baratas no cofre do banco
E o Theelonious tocando
Epistrophy

Baratas no cereal matinal
E o Thelonious tocando
Misterioso

Baratas nas melhores famílias
E o Thelonious tocando
Trinkle Trinkle

Baratas no véu da noiva
E o Thelonious tocando
Criss Cross

Baratas na comida dos presos
E o Thelonious tocando
Brillant Corners

Baratas nas minhas pernas
E o Thelonious tocando
Well You Needn´t

Baratas dançando no Waldorf
Tomando dry martinis
Escrevendo para jornais
Fumando Cohibas
Guiando carros
Redigindo artigos
Controlando aviões
Gravando discos
Vencendo eleições
Pedindo dinheiro
Comendo ratos
Tocando jazz
Invandindo casas
Maculando sonhos
Revirando lixos
Auscutando peitos
Grampeando fones
Lambendo lágrimas
Mascando fios
Procriando
Baratas

E o Thelonious tocando
Evidence

joão e josé

O nome do sujeito era João, isso já tinha ouvido. Forte, alto, branco, de cabelos muito escuros. Estava encostado no mesmo balcão em que eu tomava uma cerveja. Copo cheio de gim nacional, ele conversava com dois caras. Sorriso fixo nos lábios, a dupla tinha uma mistura de medo e respeito pelo grandão.
Outra coisa que eu também sabia: o cara era cana, da Civil. Ninguém é capaz de contar uma história como aquela se não for bandido ou polícia, nem os escritores metidos a besta, nem os repórteres metidos a investigadores. Bandido ele não era. Fora isso, até um otário como eu percebia o volume na cintura do cabra, debaixo da camiseta vermelha, onde estava escrito em amarelo "Recife é sol".
Uma mulher loira, pequena, de pernas grossas, ocupava um banquinho em frente ao lugar onde o João, em pé, gesticulava pra caralho. Não dava pra ver se a dona era mesmo gostosa, só que a bunda dela sobrava em todos os lados do tamborete. Se não fosse, tinha sido um dia.
Eu olhava de vez em quando o grupo, mas ouvia tudo, quietinho, com ar desinteressado. Por isso, descobri que naquela noite ele tinha licença para beber, sem culpas ou desculpas.
_ Hoje a patroa liberou, não é meu amor? Tô com uns problemas sérios, ela sabe, no trampo. Disse que eu não tinha nada pra fazer, só encher a cara, é o que tô fazendo_, berrava o João de meia em meia hora.
Até o gim começar a derrubar o grandão, como se fosse um daqueles pesos-penas que batem, batem, batem, devagar, mas sem parar; quando o adversário vê, ou melhor, não vê, tá na lona.
Nessa altura, os dois caras que só riam e balançavam a cabeça foram substituídos por um outro grandão, que ocupou um banquinho ao lado da mulher. A bunda dele também sobrou dos lados, mas a barriga parecia uma chapa.
Não consegui ouvir o nome do cara, mas, pelo jeito, era amigo do casal. Os dois grandões, primeiro, trocaram sopapos como se fossem beijos. Depois, gargalharam alto e falaram sobre luta vale-tudo na televisão, treinamento de cachorro e jogo de futebol.
A mulher perguntou para o recém-chegado se ele queria beber alguma coisa. Um suco de laranja foi providenciado, no que o João começou a rir e a dar tapas nas costas do amigo.
Foi quando, talvez decepcionado com o que chamou de coisa de mulherzinha, o João me encarou e veio até mim. Do nada, como se nos trombássemos há anos, ele desandou a falar.
Contou, como se fosse novidade, que estava bebendo com a autorização da patroa. Berrou um bom tempo coisas que não me interessavam. O que eu achava legal já tinha ouvido sem ter sido convidado.
Vez ou outra, discretamente, eu olhava a mulher do cara, sem beber álcool, de conversa e risos com o outro grandão. A dona parecia que tinha levado o marido ali para que ele espiasse, ou bebesse, toda sua mágoa. Uma alma caridosa.
O papo dela com o outro, no entanto, estava vários tons abaixo (ou acima) do nível do bar. Mas deu para perceber um negócio sobre um filme, uma exposição de animais domésticos e uma festa no último final de semana.
O João, que estava de costas para os dois, notou que eu os olhava com atenção e virou-se. Puxou o outro para seu lado com uma chave-de-braço, coisa de cana, e nos apresentou:
_ Este aqui é meu irmãozinho, gosto demais dele, já quebramos mais de quatro de uma só vez. Qual é mesmo a sua graça?
_ José, muito prazer, respondi.
O grandão amigo do João apertou minha mão, contou uma piada, mudou de assunto e, quando a gente percebeu, ele estava de novo do lado da mulher. Agora conversavam sobre uma novela da televisão, deu para ouvir.
O cana emendou uma história violenta e foi até o chegado. Começou a abraçá-lo com força. O abraço transformou-se em uma gravata, que virou uma chave-de-braços, que virou um tapa na cara. Coisa de amigo macho.
Aí, foi de uma hora para outra. O tira sacou a 45 e deu três tiros à queima roupa no tal grandão que era como um irmão para ele. No chão, esticado, o morto parecia ainda maior. Ocupou todo o espaço entre o balcão e a porta do bar. O sangue que escorreu contornou o mapa do Estado de São Paulo que as lajotas pretas desenhavam na calçada branca.
Depois, o João pegou um celular e chamou os canas amigos dele. Ficou sentado no banquinho, com cara de choro, típica dos bêbados, consolado pela mulher. Na certa, ia alegar crime passional, legítima defesa, defesa da honra, essas porras todas.
Terminei a cerveja e fui embora antes que os tiras chegassem. Eu sempre soube que brincadeira de mão acaba em merda.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

empirismo

A primeira constatação: eles são todos, todos, muito magros.

***
Decido caminhar um pouco, ver e ser visto, são as regras, escreveu alguém que deve estar aqui, vendo e sendo visto. Antes, uma taça deste belíssimo espumante que vai me dar uma queimação filha-da-puta no estômago, mas é imperdoável circular de mãos vazias pelos maviosos salões deste prédio.

***
Uma moça. É cantora, eu a reconheço, apareceu dia desses na televisão, no especial sobre a nova geração que reinterpreta clássicos do samba e da MPB. Minha mãe sempre diz ter lido em uma revista que a televisão engorda as pessoas.

***
A primeira dúvida: a nova geração não consegue fazer nada novo?

***
Os cabelos da cantora estão presos em um coque que deixa ver a borboleta pousada para sempre na sua nuca ossuda. Ao lado dela está o guitarrista, também da nova geração. Ele veste uma camisa de time de futebol, tamanho infanto-juvenil, e um calçado de jogar futebol. Duvido que goste de futebol.

***
A segunda constatação: eu torço para um time diferente do dele.

***
Os canapés estão ótimos, esta poderia ser a terceira constatação, mas é uma frase que o artista plástico encaminha ao dono da festa. Eu tomo nota, mesmo sabendo que não há nada de poético ou inédito nela, mas, assim, chapada ela diz muito sobre a noite: os canapés estão ótimos. Significa: os canapés estão ótimos.

***
Decido recarregar a taça de espumante. Começo a sentir a queimação, mas devo estar auto-sugestionado. Pego envergonhado um canapé de ovas de peixe sobre salmão defumado. Mediano. Um conceito médio, assim como impressões e gostos, nunca pode passar por uma constatação. Fiz bem em não ter tomado nota, constato.

***
O maestro é o mais contido entre todos os presentes, em todos os aspectos. Usa um paletó preto sobre a camisa branca e o jeans desbotado. Sua calva reflete o enorme lustre do mavioso salão. Seus sapatos de couro _marrons para não desrespeitar as etiquetas_ rangem e estalam sobre o mármore. Eu o sigo até o banheiro.

***
Uma dúvida: estou sendo visto?

***
Se eu fosse um desses babacas, pensaria algo na linha é possível morar umas três famílias só neste banheiro. Mas eu não sou, não desses. Então, fico tentando ouvir o que o maestro precocemente calvo e rigorosamente vestido fala no telefone celular.

***
De volta ao salão, luzes se acendem. Entra o ator de teatro, cinema e televisão. Só os jornalistas, colunistas e amigos vão até ele. Os demais fingem indiferença. Eu finjo que tenho que passar ao lado dele, como se aquele fosse o único caminho possível para chegar até onde está o escritor.

***
O ator tem belos cabelos, mas eles não estão em um coque. Usa blazer jeans sobre camisa preta fora da calça cinza. Nos pés, um tênis de jogar futebol. Eu não duvido que ele jogue porque, apesar de magricela, claro, ele tem as pernas fortes e um jeito de quem privilegia os raciocínios do corpo sobre os da mente.

***
O ator ganha um bom dinheiro fazendo novelas, mas ouço ele dizer viva Beckett. Dúvidas: seria Becker? Ou: se eu não fosse ator, daria um bom beque?

***
Uísque é o que toma o diretor de cinema _barba por fazer, jaquetão, pele bronzeada, cabelos desgrenhados e mãos grandes_ enquanto conversa com o documentarista _cabelos bem aparados, pálido_, que toma água e limpa os óculos na camiseta de algodão. O diálogo enche de admiração e esperança os olhos da atriz enquanto ela esvazia mais uma taça de espumante, as escápulas como asas fora do vestido, as saboneteiras onde morariam três famílias.

***
Terceira constatação: o escritor não está onde eu achei que estivesse.

***
Agora o ator está sendo abordado por dois rapazes que dirigem a ele perguntas de duplo, talvez quádruplo sentido. Ele tenta ser mais esperto do que a dupla.

***
Outra dúvida: seria a competição para saber quem é mais imbecil?

***
Avisto o jovem editor, que conversa com a moça que apresenta um programa sobre artes, literatura e espetáculos no canal pago que mostra especiais com a nova geração interpretando os clássicos do passado ao som dos ruídos distorcidos produzidos pelo guitarrista magro que não gosta de futebol.

***
Tenho a impressão de que o editor me reconhece mesmo sem me conhecer. Seu olhar soa como eu manjo os da sua laia, quem será que te convidou?

***
Encontro novamente o maestro. Ele me olha com cumplicidade.

***
Quarta constatação: estou sendo visto.

***
Ouço parte da conversa do jovem editor com a apresentadora do canal jovem. Eles falam sobre vinhos e pratos.

***
Quinta constatação: a TV engorda as pessoas.

***
Nova dúvida: se todos parecem gostar tanto dos prazeres da boa mesa e gastam seu tempo em exercícios intelectuais e de criação artística, como conseguem ser tão magros?

***
Não consigo encontrar a porra do escritor, e os garçons já começam a recolher os canapés sob os olhares indiferentes de tanta gente magra. Vou atrás do editor, mas percebo que ele já se retira junto com a apresentadora.

***
Sexta constatação: meu estômago está queimando.

***
Finalmente avisto o homenageado sentado em um sofá acompanhado da escritora e dos jovens e magros escritores da nova geração. Tomo posição e saco o bloco do bolso: calça e sapatos pretos, sem blazer, camisa azul dobrada nas mangas.

***
Fico esperando o velhinho se levantar: magro, escrevo.

***
Me aproximo do anfitrião, que é dono do banco no qual eu tenho uma dívida que não caberia nas saboneteiras da atriz, e digo: os canapés estavam ótimos!

***
Ganho a rua.

***
Sétima e última constatação: eu preciso emagrecer.

domingo, 2 de novembro de 2008

nova ortografia

Futebolês luso funde cabeça de brasileiros

FÁBIO VICTOR
JOSÉ ALBERTO BOMBIG
enviados da Folha de S.Paulo a Lisboa

"Domina o esférico Emerson. O trinco brasileiro, vestindo neste particular a camisola de sua equipa pela 44ª vez, passa ao avançado-centro Ronaldo, de volta aos relvados após lesão e sedento de golos. Prepara Ronaldo, ele vê Rivaldo fora de jogo e decide pontapear, com sua bota dourada, em direção à baliza portuguesa... Espalma o guarda-redes, e é canto para o Brasil. Pateadas explodem na bancada do Alvalade."

Ininteligível para um brasileiro, até o mais fanático por futebol, o tipo de narração acima é o que se ouve nas rádios portuguesas em dias de jogo.

Já bem grande na comunicação cotidiana, o oceano que separa os dois países parece crescer ainda mais quando o assunto é futebol _entrevistas de jogadores brasileiros em jornais ou emissoras de TV portuguesas precisam até de "tradução".

Mas o espanto dos "brasucas" com as variações da língua-mãe transcende os relvados. Após dar um autógrafo anteontem numa academia lisboeta, Ronaldo ficou cabreiro com a reação do fã.

"Obrigado. Meu puto vai ficar muito contente", agradeceu o torcedor. A ficha do atacante só caiu instantes depois, quando lhe explicaram que, em Portugal, "puto" é garoto.

Glossário:

Golo - gol
camisola - camisa
relvado - gramado
esférico - bola
pontapé de baliza - cobrança de tiro de meta
livre - falta
pontapear - chutar
trinco - volante, cabeça-de-área
guarda-redes - goleiro
avançado-centro - centroavante
equipamento - uniforme
bota - chuteira
pitões - travas de chuteira
particular ou amigável - jogo amistoso
massa associativa ou falange de apoio - torcida
bancada - arquibancada
vedação - alambrado
assobio ou pateada - vaia

(publicado na Folha de S. Paulo em abril de 2002)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

cão

Cão passageiro, cão estrito,

cão rasteiro cor de luva amarela,

apara-lápis, fraldiqueiro,

cão liquefeito, cão estafado,

cão de gravata pendente,

cão de orelhas engomadas,

de remexido rabo ausente,

cão ululante, cão coruscante,

cão magro, tétrico, maldito,

a desfazer-se num ganido,

a refazer-se num latido,

cão disparado: cão aqui,

cão além, e sempre cão.

Cão marrado, preso a um fio de cheiro,

cão a esburgar o osso

essencial do dia a dia,

cão estouvado de alegria,

cão formal da poesia,

cão-soneto de ão-ão bem martelado,

cão moído de pancada

e condoído do dono,

cão: esfera do sono,

cão de pura invenção, cão pré-fabricado,

cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,

cão de olhos que afligem,

cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!

Alexandre O´Neil

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

é só jogo de bola



Como e com quem cheguei ao pequeno estádio, não me lembro, nem interessa tanto. O que importa é que eu estava lá, na beira do campo, pronto para ver de perto mais um entre tantos jogos da tarde de sol do interior.

Naquele gramado, zona rural de São Joaquim da Barra, brancos, pretos e um descendente de índios, apelidado Garrincha, correriam atrás da bola.

A data exata também não me lembro, mas a década de 70 findava, e o legendário craque das pernas tortas enfrentava uma barra pesada, pouco dinheiro, muito bebida, problemas emocionais.

Havia alguns anos ele disputava jogos caça-níqueis como aquele pelo país em um time chamado Milionários (ironia?), junto com outros ex-craques.

As pequenas cidades do interior faziam festa para recebê-los. Garrincha era a principal atração.

Mesmo aos meus olhos de menino, porém, nem tudo era alegria. Fui ao vestiário levado por um tio. O homem de quem tanto falavam os mais velhos me pareceu triste e abatido.

Olhei os pés de Garrincha. Não muito grandes, redondos, inchados. Ele colocava as meias em lento ritual. Notou minha presença e sorriu ternamente.

Muito distante de sua melhor forma, dentro de campo ele se limitou a ser uma caricatura. Parecia não querer esconder da distinta platéia a melancólica condição.

O craque da Copa de 1962 desfilava suas dores em um modesto estádio, arquibancadas de madeira. É claro, ninguém estava ali para ver dribles desconcertantes que fizeram dele a “alegria do povo”.

Com um misto de sadismo, dever e complacência, éramos todos, inclusive eu, testemunhas do crepúsculo trágico de um grande astro, talvez da morte de um jogo que tinha goleiro, dois laterais, dois zagueiros, um volante, dois meias, dois pontas e um centroavante.

Em janeiro de 1983, Garrincha estaria morto, e eu passaria a entender um pouco mais sobre a tragédia humana.

A glória, o fracasso e a eternidade. Tudo ali, naquele momento em que Garrincha colocava calmamente as meias.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

jardim de primavera

Amoras no canteiro
caídas
Meus pés-de-pato
despedaçam corações

vermelho
explode

no meio da grande
avenida

terça-feira, 21 de outubro de 2008

oração a são joaquim

E se a vida for recanto, recato?
Se Ulysses foi um puta equivocado?
Ficar parado, um grande barato.
Viver assim assim.
No lugar onde quem roda
é a Terra.
Onde a vida tem
começo
meio
fim.

sábado, 18 de outubro de 2008

o abismo das esquinas



Na canção "São João Xangô Menino" Caetano (ou Gil, em "Montreux ao Vivo") diz: "fogo fogo de artíficio, de beleza sem razão".
Eu peço que tomem conta do menino, Xangô, ai são João Xangô menino, e vejo o rojão rojão explodindo explodindo no céu de São Joaquim da Barra.

***

Em "Trilhos Urbanos" (1979) Caetano anda de bonde e diz que tudo é "bondever".
É bondeouvir.

***

E aí chega o "Velô", o disco de 1984, que eu ganhei de Natal. Começa pelo encarte, em formato revista, com o poema concreto "Pulsar", do Augusto de Campos, na contra. Caetano músicou, preencheu de silêncio a palavra.
Onde quer que ela es te ja.

***

"Velô" é uma declaração de amor à línguagem. Numa época em que a música brasileira ainda se preocupava com isso. E aí é preciso reconhecer a influência de Paulo Leminski na vida/obra caetanística. Numa carta de setembro de 1978 ao poeta Régis Bonvicino, o poeta comenta o "Muito" (o do fogo fogo de artifício e de "Cá Já" e "Sampa"), diz que está ouvindo o disco o dia inteiro, faz elogios etc...
Caetano foi até Curitiba.
Caetano gravou Leminski e sua "Verdura" no "Outras Palavras" (1979).

***

"Velô" tem "O Quereres", aquela que diz "onde pisas o chão minha salta/e ganha liberdade na amplidão", fala da "dulcíssima prisão" dos amores.
Não é fácil traduzir o desejo. Ele traduziu.

***

1984. E o disco termina com ... Adivinha? "Língua": "Flor do Lácio sambódromo/Lusa América Latim em Pó"; antes rola um Ritchie humilhando Bowe em "Shy Moon", a canção também da lavra caetanística.
E assim se foi 1984. E assim eu volto quando quero a 1984.

***

Vai que eu não pare de ouvir Caetano agora? E então eu recuo até o "Araçá Azul" (1973) só para ouvir o bolero "Tu Me Acostumbraste", e aí, na segunda parte ele começa a cantar de um jeito como se tivesse com o nariz tapado, ou, sei lá, atrás da porta da cozinha, com uma bacia ao lodo do rosto, tipo auto-falante, brincando de rádio, brincando de imitar as coisas que ouvia no rádio quando era pequeno, Célia Cruz, quando era um niño de Jesus; e eu me lembro da minha mãe escolhendo arroz e da bacia atrás da porta daquela casa em que minha irmã nasceu, onde eu cantava Roberto Carlos, e minha mãe dizia que eu tinha os olhos fundos como os dele;
onde eu perfeitamente podia ter dado à minha irmã o nome de Maria, talvez Bethânia.

***

Vai que eu volte outra vez para o "Velô"? Vai que eu ouça o "Homem Velho", em "memória de meu pai, a Mick Jagger e a Chico Buarque, que agora tem 40 anos"? Vai que eu acredite que "a solidão agora é sólida, uma pedra ao sol"?
Vai que eu me levante agora para dar um beijo no meu pai, "para deixar a vida e a morte para trás"?

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

eu queria ser xico sá



ps: este post não vale ser lido sem ser ouvido.

Por Xico Sá:

EU QUERIA SER BILL MURRAY


Eu queria ser Bill Murray. Em Flores Partidas, assim mesmo, broken flowers, do Jim Jarmusch. Indo em busca do filho que talvez não tenha tido. Bill Murray parado. Não diga que silêncio; diga “não ouço nada”. Bill Murray on the road, no sossego, na moral e na elipse. A máquina de escrever cor de rosa, a motocicleta cor de rosa, flor de obsessão, rosa. Bill Murray d.Juan em fim de feira _a festa acabou, José, para onde?_ e a carta anônima, o vizinho Sherlock com ácido, a busca do rebento que não teve, teve?, não importa. Eu queria ser Bill Murray diante daquele gato, nem carecia a Sharon Stone, o gato feito à imagem e semelhança de Bill Murray, felino metafísico da porra. Ali, dizendo, o gato: “Você veio aqui, velho Bill, com segundas intenções, não, não sou teu filho, hombre”. Eu queria ser Bill Murray naqueles sonhos, a reprise. A lolita na vitrine, Lola, bundinha americana, mas safada, é o que vale. Bill Murray vaga pela América, ô, mas num me venha com essa de metáfora da América, apenas uma história sem final, como todo enredo de busca, como a própria cara de Bill Murray, procura. Eu queria ser Bill Murray emparedado na quarta parede, sem foco, boiando nos teus lindos olhos de cigana oblíqua. E basta.

(publicado no Carapuceiro em novembro de 2005)

mas você tem certeza?

Eu sei que Madeira de Melo perdeu a batalha na Bahia em 2 de julho de 1823.
Eu sei que o nome do Lobão é João Luíz Woerdenbag Filho.
Eu sei que a água não ferve na mesma temperatura em altitudes diferentes.
Eu sei fazer feijoada portuguesa e arroz de polvo.
Eu sei a letra de Faroeste Cabloco, Night and Day e Light My Fire.
Eu sei declamar pelo menos uma poesia.
Eu sei que uma noite pode mudar o mundo.
Eu sei que as mitocôndrias estão no citoplasma das células eucarióticas.
Eu sei chegar no bar do Celso sem pedir informações.
Eu sei dirigir um carro.
Eu sei que meu pai nunca gostou que eu tivesse cabelos compridos.
Eu sei _só eu sei_ quem quebrou aquele vaso que minha mãe tinha na sala.
Eu sei o que eu faria se ganhasse na loteria.
Eu sei o que eu faria se voltasse no tempo.
Eu sei o que eu não faria se voltasse no tempo.
Eu sei que o Dado Dalabella é filho do Carlos Eduardo Dolabella, que fazia um jornalista no seriado Sucupira.
Eu sei a escalação do São Paulo campeão brasileiro de 1977.
Eu sei que você tem pintas na perna e uma entre os peitos.
Eu não sei o que fazer.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

self-portrait

Neste espelho, eu te imploro:
chega ao menos por hoje
lágrima incansável
que esta alva cara lava

Deste rosto, eu te suplico:
cessa de minar feito bica
de cortar minha pele
de sulcar de sal a vala

Deste lado, eu decido:
já é tempo de enxugar-te
no coração, carregarei a chaga
na camiseta, o sudário

snaporaz



Nesse momento, Zuzana, ou melhor Vicky, quero dizer, muitas Zuzanas, umas quatro ou cinco delas, entraram no bar, ao lado do irmão do Ahmed, do primo do Ahmed e do próprio Ahmed. Olhando bem de perto, vi que todas as mulheres eram malvadas e, principalmente, artificiais, forjavam pintas na pele, carregavam litros de silicone nos peitos e sorrisos frios nos lábios. Os árabes riam alto, faziam pregações contra a monogamia, brindavam com mojitos o declínio do macho-cristão-ocidental, iniciado no dia em que Papa Hemingway deu sua primeira brochada.

a divisão dos justos

Não avancem sobre a solidão do meu sono.
A levitação é um ato da matéria
que recuso admitir.

Meu corpo é dor
e por isso deve ser coberto,
fixado ao chão sob grandes pedras.

Não esgotem os monstros da vigília.
O lugar do pensamento não é um condomínio
[fechado,
como um espaço onde é possível abstrair a
[essência da insônia.

Não arrebentem meu saco com os filhos
[da simbologia,
aqueçam a dúvida perante a divindade
e aceitem que não faço parte de nada,
somente o quase nada que se parte
na partilha dos justos

(marcos losnak)

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

i really want to see You



Oração no Saco de Mangaratiba

Nossa Senhora me dê paciência
Para estes mares para esta vida!
Me dê paciência para que eu não caia
Pra que eu não pare nesta existência
Tão mal cumprida tão mais comprida
Do que a restinga de Marambaia!...

(Manuel Bandeira, 1926)


Oração em um Bar Qualquer de São Paulo

São Pascoal da Auto-Estima me dê força
Para estes poços para esta lida!
Pra que eu não aceite a insignificância
Tão bem cumprida tão mais comprida
Do que seu conta-dose na garrafa de Black...

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

bilhete



Adeus, coisas que nunca tive,
dívidas externas, vaidades terrenas,
lupas de detetive, adeus.
Adeus, plenitudes inesperadas,
sustos, ímpetos e espetáculos, adeus.
Adeus, que lá se vão meus ais.
Um dia, quem sabe, sejam seus,
como um dia foram dos meus pais.
Adeus, mamãe, adeus, papai, adeus,
adeus, meus filhos, quem sabe um dia
todos os filhos serão meus.
Adeus, mundo cruel, fábula de papel,
sopro de vento, torre de babel,
adeus, coisas ao léu, adeus.

Paulo Leminski

jairo jones, o boxer

_Não se entrega Jairo Jones, assim ele vai te fazer beija a lona no próximo round. Presta atenção enquanto enxugo tua cara: toda vez que ele solta o jab de direita, ele abaixa demais a guarda; então, nessa hora, você se esquiva, recua meio passo para não tirar ele do teu raio de ação, e solta o cruzado no queixo dele, no queixo, entendeu?
_Entendi, entendi, deixa comigo.
_Vai, já tocou o gongo, vai!
“Isso, vem filhadaputa, vem, você vai ver o que vai te acontecer. Você vai chegar, eu vou dar meio passo... O que é que eu tenho de fazer mesmo? Jab, direita, esquer”
_Caralho, que merda, Jairo Jones. Ô Meio-Quilo, vai lá abanar o Jairo e jogar água na cara dele.

Jairo Jones gasta todo o dinheiro que ganha nos ringues com bebidas e mulheres. Chega a tomar uma média de trinta socos na cara por luta. Está ficando com a memória lesada, mas não tem coragem de enfrentar uma tomografia porque morre de medo de ficar preso dentro da máquina.
Já falei que Jairo Jones gasta todo o dinheiro que ganha nos ringues com bebidas e mulheres?

terça-feira, 7 de outubro de 2008

separações

_Vá na frente. Quero pelo menos poder olhar sua bunda.

***

_Então era isso que ela sentia todas as madrugadas enquanto me esperava!

***

_Eu sabia que você era um amigo carinhoso... Mas achava que fosse dele.

***

_É muito bom poder sair pelos dois lados da cama.

***

_Posso baixar o seu disco do Pixinguinha?

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

por um lindésimo de segundo

tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo feito
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu


tudo em minha volta
anda às tontas
como se as coisas
fossem todas
afinal de contas

(paulo leminski)

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

anorexia

a última coisa
que comi
foi você

terça-feira, 30 de setembro de 2008

wait until spring, bombig

"Jorge Fraga acabava de fazer quarenta anos quando decidiu estudar a vida e a obra do poeta Claudio Romero"

(Julio Cortázar, início do conto "Os Passos no Rastro", do livro "Octaedro")

domingo, 21 de setembro de 2008

Linguatoris

Se você fosse um morango,
Te devoraria
Lambida a lambida

Fome que nunca míngua
Quanto mais se come
Incha incha incha

Língua virando fruta
Fruta virando língua

sábado, 20 de setembro de 2008

blade runner waltz



Em mil novecentos e oitenta e sempre,
ah, que tempos aqueles,
dançamos ao luar, ao som da valsa
A Perfeição do Amor Através da Dor e da Renúncia,
nome, confesso, um pouco longo,
mas os tempos, aquele tempo,
ah, não se faz mais tempo
como antigamente.
Aquilo sim é que eram horas,
dias enormes, semanas anos, minutos milênios,
e toda aquela fortuna em tempo
a gente gastava em bobagens,
amar, sonhar, dançar ao som da valsa,
aquelas falsas valsas de tão imenso nome lento
que a gente dançava em um algum setembro
daqueles mil novecentos e oitenta e sempre.

Paulo Leminski

ps:
é setembro;
véspera da metade da régua;
que eu já gastei
amando,
sonhando,
dançando valsas;
e hoje sentindo
saudades daqueles
mil novencentos
e oitenta
e sempre.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

amora

Poemetes da Bibi e meus (reunião da produção blogada aqui) neste sarau do Amora Restaurante e Bar, em Campinas. O convite, uma gentileza de minha querida prima Paula, a artista do estabelecimento, estendo a todos abaixo, é só clicar no bicho.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Come on, baby, gonna take a little ride



Let's swim to the moon, uh huh
Let's climb through the tide
Penetrate the evenin' that the
City sleeps to hide
Let's swim out tonight, love
It's our turn to try
Parked beside the ocean
On our moonlight drive

Let's swim to the moon, uh huh
Let's climb through the tide
Surrender to the waiting worlds
That lap against our side

Nothin' left open
And no time to decide
We've stepped into a river
On our moonlight drive

Let's swim to the moon
Let's climb through the tide
You reach your hand to hold me
But I can't be your guide

Easy, I love you
As I watch you glide
Falling through wet forests
On our moonlight drive, baby
Moonlight drive

Come on, baby, gonna take a little ride
Down, down by the ocean side
Gonna get real close
Get real tight
Baby gonna drown tonight
Goin' down, down, down

febres de setembro

Vôo Anti-Horário

É o Super-Homem dando voltas
contrárias ao redor da Terra
para retroceder o tempo

São os ponteiros dos relógios
refazendo horas nas paredes dos escritórios

São as oito longas arestas
que ressurgem das ruínas, uma a uma
entre os pavimentos, até atingir o céu

É Mandrake com a cartola nas mãos,
olhos e dentes cerrados, encadeando as
sílabas mágicas numa cabala doída

É e. e. cummings construindo sobre o
tablado duas sílabas, o Homem-Borracha
esticando para alcançar as letras que caem

É o mantra-gerúndio. Que o passado ressurja
Agora: dominós se ergam, cartas de baralho
e lajes de concreto retornem ao lugar

São Withman, Thoreau e Ginsberg
escrevendo a palavra: V I D A

soprando-a em uníssono das colinas,
sobre as pradarias
do topo das sequóias
à ponte do Brooklyn

O vulto veloz de Kal-El rasga o céu da ilha,
o planeta gira ao contrário,
centenas, milhares, milhões de vezes

até os aviões pousarem de ré, prata silente
nos aeroportos de origem, sua fuselagem
sob os primeiros raios do sol,

e os passageiros, um a um,
aos fartos breakfast, aos beijos de bom dia
às suas camas,
aos seus sonhos
do dia anterior

Joca Reiners Terron
11/09/2001

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

viagem à alma nordestina

Com sólida base jazzística, o pianista Jovino Santos Neto faz uma recriação vigorosa de ritmos como maracatu, baião e forró. Por José Alberto Bombig. Leia aqui, na Bravo! deste mês, que acaba de chegar às bancas.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

o tom de todos nós

Um belo texto do escritor João Gabriel de Lima, editor da Bravo! (veja o link), sobre o polêmico encontro do Rei Roberto com Caetano em Sampa, termina com a pergunta: qual o seu Tom?
O meu está em um CD que vem junto com a biografia do maestro escrita por sua irmã, Helena. São gravações caseiras feitas por Chico Buarque. Na melhor delas, Tom mostra ao parceiro a melodia de "Anos Dourados" (postei um vídeo abaixo) e diz algo como "é a coisa mais singela do mundo". Sempre que ouço o CD fico imaginando o Chico começando a delinear a letra que viria a ser tão perfeita. Há também uns diálogos maravilhosos de vozes pastosas porém lúcidas (ou lúdicas?) sobre garrafas de vinho e empregadas domésticas.
Conheci o livro e a autora em 1997, no Pinguim, em Ribeirão Preto, junto com o Zuenir Ventura e com um casal que havia acompanhado o maestro na Banda Nova. Foi uma noite inesquecível dentro de uma época em que eu escutava o dia inteiro o "Urubu", outro grande disco do Tom. Tão longe do mar, no meio dos canaviais, mas muito perto do Rio.

fim-de-semana

Tangerina na rede
cuspo
um
a
um
os problemas

terça-feira, 26 de agosto de 2008

sigmund

Na edição de agosto, a Bravo! aborda a relação entre o escritor austríaco Arthur Schnitzler e o criador da psicanálise Sigmund Freud - que chamou o escritor de seu "duplo". Schnitzler criou seus romances ao mesmo tempo em que Freud desenvolvia sua teoria psicanalítica. No dia 27 de agosto, às 20h30, participam da mesa de debate Noemi Moritz Kon, psicanalista e autora da reportagem, e Helmut Galle, professor de literatura da Universidade de São Paulo.

Café Literário Centro de Cultura Judaica
Rua Oscar Freire , 2500 - Sumaré
Tel: (11) 3065-4333
Dia 27 de agosto, às 20h30

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O sorriso do João

Bem mesmo, eu só me lembro da chuva, muita chuva, dessas do interior, que chegam pelos lados, dando umas lambadas ardidas na gente, com um cheiro forte de mato e de terra. Muito louco. Todo o resto é barro, um extenso lamaçal, terreno escorregadio e pegajoso da memória. Mas isso não o interessa, não é mesmo? Como dizem nos interrogatórios, vamos aos fatos. E contra eles, não há argumentos, sentenciarão ao final os homens do raciocínio límpido. De minha parte, antecipo o contra-argumento: há as histórias. É uma delas que tentarei contar agora, revolvendo a água turvada destes últimos dias para recolher o que ainda flutua e tatear o lodo em busca do que quer se esconder.
Foram quase oito horas de viagem para chegar até a fazenda. Um caminhão carregado de combustível, outro de tomates, um fusca e duas camionetes transportaram meu corpo magro, minha cabeleira suja e a mochila velha. Apesar de o Júnior ter viajado com o pessoal da faculdade logo na sexta-feira, muita gente também caiu na estrada no domingo de Carnaval. Quem não metesse o dedo para arranjar carona aquela manhã perderia os dois últimos dias do festival, que não tinha porra nenhuma a ver com a folia, pelo menos não com a folia das ruas e dos salões. Meu lance e o dessa moçada era ver o João na segunda-feira. Então, na rodovia, motorista gente fina parava e logo cinco ou seis caronistas enfiavam o rosto na janela. Aí, era quem entrasse primeiro, cada um por si mesmo.
Viemos trocando idéias sobre o que pintasse, o que rolasse de assunto. Uns também colocavam na roda um cantil com cachaça. Outros, um pedaço de sanduíche, de bolo integral. Com sorte, pintava até um baseadinho, isso, é claro, dependendo da boa vontade do motorista de fazer vista grossa ou de participar dando uns pegas. Foi uma viagem, literalmente. Acho que ninguém desse pessoal está mais na fazenda ou nas imediações, todo mundo deve ter caído fora na Quarta-feira de Cinzas. Também não me lembro dos nomes. Muito fumo e muita cachaça, desde o início. Além da chuva, é claro, que deixava a gente com a impressão de que tudo estava embaçado.
Chegamos tipo no final da tarde. Fui direto para a fazenda, tentar descolar um canto em uma barraca de algum camarada ou de alguma alma caridosa, mas, nessa minha primeira noite, acabei dormindo ao relento mesmo, enrolado na lona que a mulher de um camarada me descolou. Quer dizer, praticamente nem preguei o olho. Também nem vi os shows direito. Pela manhã, voltei a procurar o Júnior, agora com mais calma, percorrendo o imenso pasto de cima a baixo e até mesmo enfiando a cabeça dentro das cabanas. A mesma figura que me arranjara a lona disse que ele tinha se mandado para Bauru naquela tarde, com uma turma da região, atrás do João. Fiz o mesmo.
Não foi difícil encontrar o hotel Vitória Régia. Mas não vi nem o Júnior nem o João lá, ainda que o mensageiro tivesse me garantido que ele, o João, estava na cidade havia dois dias e tinha até pedido para deixarem um carro preparado na garagem. Eu nem sabia que ele dirigia, achei que matasse o tempo trancado no quarto, tocando violão, fazendo yôga e fumando maconha, mais nada além disso. Há certos tipos de homens que não gosta de guiar veículos. Achei que ele fosse um desses. O local estava cheio de curiosos, viajantes e artistas. Ficamos lá até o início da noite, quando me juntei a um grupo de jornalistas e voltei em uma kombi para a fazenda Águas Claras, para a quarta noite do festival, a esperada segunda-feira do show do João. Tive a impressão de vê-lo dirigindo um dos carros que nos ultrapassou na estrada, mas acho que era piração. Quando chegamos, os primeiros shows já estavam rolando e um dos meus novos amigos da perua me botou um naco de LSD na boca.
Essa noite foi a de chuva mais forte, parecia que o mundo ia acabar. A iluminação era fraca e eu procurava o Júnior cutucando as pessoas, mas só dava de cara com gente atolada na terra, tentando fumar ou mamando cachaça. Uma briga estourou, acho que era uma briga, as pessoas se afundavam no barro ou tentavam escapar com o vento cortando na cara. Eu via o palco bem de longe, a galera correndo para botar plásticos e lonas em cima dos equipamentos de som. Tive um acesso de risos que deve ter durado horas e me agachei no meio de uma touceira de capim para sentir o cheiro do mato e da bosta de vaca. Foi quando encanei que aquilo parecia um campo de batalha, com a diferença de que eu não sabia quem era o inimigo. Fiquei com muito medo e tive mais vontade ainda de encontrar o Júnior ou de ouvir o João, que tocaria dentro de algumas horas, cantar “O Amor, o Sorriso e a Flor”. Pensar nisso era o que me acalmava, junto da pinga que eu ingeria em quantidades industriais. Então, apaguei, total. Só no dia seguinte, descobri que o show do João havia sido adiado por causa da chuva. Menos mal, pensei, afinal eu estava lá para ouvir o que ele e o Júnior tinham a dizer.
Quase recomposto, tomei um copo de café e comi um sanduíche de queijo, o suficiente para recomeçar a beber e a fumar. As apresentações da noite anterior tinham sido transferidas para a tarde daquele dia, a Terça-feira Gorda, então, a festa começou cedo. No meio do pasto, curtindo o som de sei lá quem, dei de cara com um grupo de conhecidos da faculdade de Filosofia e perguntei do Júnior. Antes de responder, eles quiseram saber por que a gente tinha brigado na festa do Dunguinha, ainda em São Paulo, na noite de quinta-feira. Respondi que eu também não sabia, achava que era por causa de uma bobagem de uma discussão sobre a ética em Espinoza ou sei lá o que. Mentira, o motivo era o namoro dele com a Fernanda. O Júnior e eu morávamos na mesma república, dividíamos o mesmo quarto fazia dois anos, éramos inseparáveis até ela aparecer com aquelas porcarias de incensos e vestidos indianos, e Ele praticamente se mudou para a casa dela.
Foi nessa hora que alguém chegou e disse “acabei de trombar o Júnior em uma barraca atrás do palco, ele tá esperando o João”. Eu sabia que ele faria isso, só não tinha pensando na possibilidade antes. O Júnior tentava imitar o João no violão, na yôga e na maconha. Fiquei feliz por um momento e saí esbarrando em quem estivesse na frente, deslizando no lamaçal. Foi quando a chuva aumentou de novo, cheia de força e daquele cheiro de mato e de terra que eu falei no começo. Parecia um sonho: água, barro, meu pé atolando fundo, um monte de gente na frente, um segurança, dois seguranças pensando que eu queria invadir o palco, eu me desvencilhando deles, o ácido do dia anterior batendo de novo, meu coração batendo mais rápido, a pinga com mel e limão encharcando minha cabeça, o fumo, o zíper da barraca, a Fernanda de quatro e o Júnior em cima dela. Os dois rindo da minha cara. É, acho que estavam rindo da minha cara. Definitivamente, estavam rindo da minha cara.
Fechei o zíper e saí desnorteado. Fiquei um tempo tentando pôr as idéias no lugar. Até que passei a mão em uma pedra grande, com umas ranhuras feitas pelo tempo, louca, parecia artesanato que os hippies vendiam. Me deu outro branco. Voltei. Chamei o nome dele. A vagabunda tinha saído atrás de fumo ou de birita. Assim que ele me olhou nos olhos, desferi um único golpe. Pensam que ele tomou tanta droga que caiu de cabeça na pedra.
Como disse, essas lembranças chegam igual a flashes. Deixei o corpo arrebentado no barro do fundo da barraca e ouvi dizerem que o show do João havia, de novo, sido cancelado. Dessa vez, para sempre. Não havia condições de ninguém cantar com aquele temporal, muito menos o João.
Minha roupa estava toda suja de sangue e de lama, uma massa marrom avermelhada no peito que formava um desenho psicodélico muito louco. Saí andando e parei de novo em Bauru, de novo na porta do hotel, madrugada alta. Acho que foram uns 30 quilômetros de caminhada. Fiquei imóvel como uma estátua de barro, até um farol me cegar e me obrigar a sair da frente do portão, metendo a mão na cara para tapar os olhos. Quando as tirei, o carro estava a meu lado. Então, o João Gilberto me deu um sorriso lindo, acho que era o João Gilberto, ajeitou os óculos e arrancou lentamente na noite fresca, com esse cheiro de terra que a chuva do interior tem. Definitivamente, era o João Gilberto. Muito louco. Ele saiu para respirar. Fez bem.

sábado, 16 de agosto de 2008

maracangalha

_Seja bem-vindo, Dorival!
_Salve Tom! Cadê o Vinícius?
_Foi buscar o uísque. Você demorou, hein?
_Acontece que eu sou baiano, Tom...

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

um bom debate

No lançamento de Bravo! na FNAC Pinheiros, em São Paulo, os cineastas Bruno Barreto e João Moreira Salles e o jornalista André Nigri discutiram, entre outras, a seguinte questão: por que o cinema pauta o debate cultural no Brasil e a literatura sumiu de cena? Dê sua opinião. Veja aqui

domingo, 10 de agosto de 2008

jardim de inverno

Pneu sem ar
Na Vila Mariana
Só o mundo a rodar

***

Dia plantado na cama
Como se grama na cama
Eu fosse

***

Bolero que trafega
Entre sonho e libido
E me faz caminhar dividido

***

Andado
Chegado
Partido

Andar diluído
Metade prum lado
Metade em duplo sentido

***

Um dia recuperarei
O que se perdeu
No reino de Morfeu

Todas as idéias
As palavras
Que se dissolveram
Ao bafo quente do deus

Um dia ordenarei os sonhos
Emendarei as narrativas
Colarei o que não tem encaixe

E descobrirei que o meu destino
Escafandrista do desterro
É sonhar antes de domir

***

Tiro de prata no peito
Nem assim morro
Apenas parto
Nasce outro
Com o nome saudade

***

Não vou embora
Desta,
Para melhor,
Fica pra outra.

***

Que besteira é a vida!
Um jogo em que ganha
Quem melhor lambe ferida?

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

um urso no sótão

Os psicóticos olhos do tempo

O tempo funga em minha nuca.
derrama sua baba horrenda em minhas costas
e esfola meu calcanhar com simplicidade.

Encurralado num corredor apertado,
resta-me apenas engolir a saliva com raiva
e rogar a maior de todas as pragas em brasa.

Currado como detento recente,
deformo-me na humilhação da posição fetal
e aprisiono o soluço no ranger dos dentes.

O tempo não olha o estrago que faz,
seus olhos psicóticos estão sempre fechados
imaginando luz onde existe putrefação no vácuo.

O tempo me quebra inteiro
e grita que sou mais um dependente
que o destino do meu sangue
é fazer parte da terra.

Marcos Losnak

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

mileumaléguas



Você me afogou o juízo
No céu da boca
me colocou guizo

Na tua mesa
Quer me ver guisado
Esperando ser devorado

Quem sabe assado
Maçã na boca
Peixe
Na rede
Laçado

Mas espere
Com quantos garfos
Pretendes me rasgar?

Com quais talheres?
Com que faca guinzo
Gueixa minha
Me destroçar?


Antes, escamas
Uma
a
Uma
terás de pinçar

Sou Namor
Sou Submarino
Sou Princípio

Acquamares
Acquamundo
Acqualouco

Verdade submersa:
Tenho guelras

De aço
Sabias?

Por isso
Pulo
Me debato
Quase escapo

Ensaboado
Esguio
Escorro

Sim
Livre
Escapulo

Escapo
Afundo
No lodo

Escolho o poço
A fossa abissal
Do seu olho

A foz onde teu desejo
Salmoura carne a boiar
Deságua

Mergulho
E nado
Nado
Nado

(com a participação de Namor, o Príncipe Submarino, o desenho que eu mais gostava na submersa infância)

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

terça-feira, 5 de agosto de 2008

domingo, 3 de agosto de 2008

eu vou cantar minha dor



William Faulkner liga o rádio do hotel Esplanada
Mais um dry martini
Outro
Outro
De cachaça

***

"Lábios que eu beijei
Mãos que eu afaguei
Volta
Dai lenitivo à minha dor"

***

Que porra Frank Sinatra está cantando?
Em português?
Sinatra é um louco filha-da-puta.
Canta muito bem.
Em português.

***

_A dor de Orlando é muito grande.
_Ele bebe, ele cheira, ele ama.
_Ele não canta mais Rosa, o Orlando, sabia?
_Não.
_É por causa que a mãe morreu.
_Ela gostava de Rosa?
_Era a música preferida dela.
_Se ele cantasse ele chorava?
_Acho que sim.

***

Caralho de país estranho.
Frank Sinatra cantando em português.
Eu devo estar muito bêbado.

***

"Não guardo frios rancores
Pois entre os teus milamores
Eu sou o número um
Eu sou o número ummmmmmmmmmm"

***

_Morfina.
_Orlando era viciado em morfina?
_Teve os dedo do pé estirpados pelo bonde. Os dentes foram raspados até a gengiva.
_Orlando sentia muita dor por isso?
_Sim, mas não era por isso.

***

William percebe que não é Sinatra quem está cantando.
Pensa que encontrou alguém melhor do que Sinatra.
Fica feliz.


***

"Pega machuca minha dor
Nega neguinha
Tudo tudinho
Meu amorzinho
Com essa boquinha
Vermelhinha
Rasgadinha
Que tem veneno"

***

Melhor assim. Eu não queria ouvir Sinatra hoje.

***

O mensageiro do hotel chega para avisar William de que estão a sua espera na portaria.
Ele pensa que 1954 é um ano muito louco.
E que Sinatra canta muito bem em português.
E desliga o rádio.

***

"Naná és sonho que se fez mulher
És dia em pleno amanhecer"

***

William tem um prêmio Nobel de literatura
Um monte de livros publicados
Mas sofre
E não sabe o motivo

***

"Deus tem compaixão
Deste infeliz
Por que sofrer assim?
Compadecei-vos dos meus ais"

***

_Mas e aí? Por que ele sofria?
_Sei lá. Ele teve um fim de vida triste.
_Que louco isso, né? Os caras atingem o sucesso, a glória, as multidões, mas continuam tristes.
_Acho que nem eles sabem o motivo.

***

Orlando era o cantor das multidões.
Tinha um monte de prêmios.
Tinha dinheiro.
Tinha mulheres.
Mas se cantasse Rosa, chorava.


***

"Jurar
Aos pés do onipotente
Em preces tão dolentes"

***

Orlando era foda!!!!

***

Faulkner também!!!!

***

Entre e a dor e o nada,
Eles escolheram a dor.


***

"Um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante

Carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisas que os valha
ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra"

(Paulo Leminski)

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

cada noche un amor



Assisti ao "Velho e o Mar" junto com meu avó, que era cantor;
quando eu era pequeno.
Um versão antiga para o cinema, só nós dois.
Não me lembrava disso até ontem.

Ele também era pescador;
quando eu era pequeno.
Eu gostava muito do meu avô.
Ele cantava igual ao Orlando Silva;
quando eu era pequeño.

Eu estou relendo o Velho e o Mar.
O meu avô me levava para pescar;
quando eu era pequeno.
Mas eu gostava mais de ouvir ele cantar "Número Um".
Eu sei cantar "Número Um" até hoje.

O meu avô teve muitos cachorros caçadores.
Eu ia caçar com ele e os cachorros;
qundo eu era pequeno.
Mas eu gostava mais de ouvir ele cantar "Número Um".

Eu estou ouvindo muitos boleros;
relendo o livro do pescador que também era caçador;
que se passa em Cuba;
onde gostam muito de boleros.

Meu pai dança muito bem boleros;
desde quando eu era pequeño.
Meu avô já morreu;
como os boleros.

Eu estou sentindo muitas saudades do meu avô.
E ouvindo muitos boleros.

obsessão

quarta-feira, 30 de julho de 2008

à deriva

Em mar revolto
Barco sem porto
Agitando bandeira

Carmesim

terça-feira, 29 de julho de 2008

merça

Caros,

Marquinhos manda convidá-los pro churrasco de hoje (terça, 29 de julho). A idéia é comemorar os 40 anos do bar enchendo a cara e a pança. De quebra, vai rolar a reimpressão ao vivo e em muitas cores da Antologia Bêbada feita pelo pessoal da Dulcinéia Catadora. Cada conto receberá uma ediçãozinha individual, nenhuma capa é igual a outra etc e tal.

A bagaça começa às 15h e vai até o Kassab mandar kabar. Apareçam!

Abraços
--
Joca Reiners Terron

sexta-feira, 25 de julho de 2008

bauru não tem fim

Há livros que se intrometem na vida da gente. “Paris não tem fim”, do Vila-Matas, por uma série de razões, meteu o pé na porta da minha. A primeira vez que ouvi falar dele remonta ao início do ano da graça de 2005, quando enviei para o Joca Terron um fragmento de um troço que eu estava escrevendo.

Ele me respondeu com estímulo e disse que naquele momento trabalhava na tradução de uma obra, no caso o “Paris”, que, como eu, também citava o concurso anual de sósias de Ernest Hemingway em Key West. Em maio deste ano, após ter degustado costelas de porco e espinhaço de ovelha na casa do amigo, o Vila-Matas voltou ao centro do assunto, e o Joca me presenteou com um exemplar do livro.

Encontrei muito mais afinidades do que estas entre o livro e minha vida e uma delas me chamou particular atenção, a passagem em que Vila-Matas cita um boxeador que era muito parecido fisicamente com Hemingway e, por conta disso, ele indaga o homem a respeito da semelhança, ao que o sujeito responde: “É que eu sou Ernest Hemingway”.

Em 1990, recém-chegado a Bauru, onde fui muito pobre e feliz cursando jornalismo na UNESP, percebi, solitário na mesa ao lado da minha no Bar do Ô, um sujeito cabeludo, calça jeans, camiseta branca, casaco e botas de couro, cantarolando algo dos Doors. Eu ainda não tinha amigos, fugia dos veteranos para tentar preservar as minhas madeixas, que também alcançavam os ombros naquela época. Me aproximei e perguntei:
_Você gosta do Jim Morrison?
_Eu sou o Jim Morrison _, respondeu o cara que um dia traduziria o trecho quase igual do Vila-Matas.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

sem pacote fechado

As obras completas do amor
Têm de ser colecionadas
Fascículo a fascículo

quarta-feira, 23 de julho de 2008

still on the road

Sentei-me na parte traseira do táxi, um carro grande, bancos confortáveis. Ela ia na frente. São raras as mulheres que mesmo sozinhas andam imponentes ao lado do motorista.

Quando fui apanhado estava à beira da avenida, olhando o destino linear dos motores, a brutalidade de suas rodas. Qualquer um pensaria que eu aguardava um carro, um ônibus. Menos ela. Ela sabia o que se passava na minha cabeça naquele dia. Por isso, estava lá, como eu secretamente esperava.

O motorista arrancou, uma câmera viajando pelos prédios, canteiros e pedestres. Ela perguntou sobre mim. Disse que me sentia bem. Quis saber dela.
_Na medida do possível, correndo conforme o planejado_ foi sua resposta.

O trânsito, num capricho divino, estava tranqüilo para aquele horário. Eu queria que estivesse ruim. Não trocamos mais palavras, apenas dois olhares, e eu fiquei observando a nuca dela, o contorno dos ombros, a extensão dos braços nus, suas mãos.

Súbito, seus pelos ficaram mais dourados do que de costume e se eriçaram, da medula até o punho, uma pele retesada. Deve ter sido algum vento atrevido que furou o bloqueio das janelas, mas preferi acreditar que seu corpo desobedecia a sua cabeça e ainda gostava de mim, ainda me queria.
_Pode parar aqui, por favor_, pedi ao motorista.

Desci em um ponto qualquer da enorme cidade. Um moleque pegava latas vazias de cerveja em uma lixeira, a moça passeava com o cachorro. Abri um sorriso. Aquela pele arrepiada era um bom motivo para continuar vivo.

domingo, 20 de julho de 2008

a vida é um grande bolero



Convergência

Aurora de rosas y amanecer
Nota melosa que fingió el violín
Novelesco insomnio, do` vivió el amor
Así eres tú, mujer
Principicio y fin de la ilusión
Así vas tú em mi corazón
Así eres tú mi inspiración
Madero de nave que naugrafó
Piedra rodando sobre si misma
Alma doliente vagando a solas
De playas y olas así soy yo
La línea recta que convergió
Porque la tuya al final vivió

(marcelino guerra/bienvenido júlian gutiérrez)

sexta-feira, 18 de julho de 2008

morrison hotel



Hoje eu acordei ouvindo Doors
E tomei uma cerveja

No final do dia, o banco saberá
que eu paguei minha fatura

Uma madrugada aflita
Well, I woke up this morning
I got myself a beer

The Doors knows everything
O banco também
Portanto, saberá ao final do dia

Alguém assalta um banco de havaianas?
_Deve ser o celular, senhor.

_Bom dia, está atrasado. Pode somar para mim?
_No final do dia o banco saberá que o senhor pagou.
_Que bom, que bom.
_Mas esta é do mês seis.
_Sim, a sete é daqui a cinco dias.

E se eu for atropelado?
Se eu fugir para o Maranhão?
_O banco saberá no final do dia.


O banco é único a saber
sobre o meu futuro

quarta-feira, 16 de julho de 2008

terça-feira, 15 de julho de 2008

segunda-feira, 14 de julho de 2008

bandeirantes blues



Maravilhas ahead, aumenta o som, amor
Aqui vamos nós rumo ao início
Disco em contrário sentido
Para ouvirmos a frase cifrada
Tocada em suspiro sustenido

Keep your eyes on the road, baby
Músicas para rodar na estrada
Corações acelerados, olhos colados
Nas faixas, no asfalto, no nada

Pisa que a noite é clara, honey
A lua é crescente
Não há em toda a pista
Rife de motor mais potente

Avança, baby, milhas e milhas adiante
Quilômetros que viram números
Pedras que nos viram passar
Cai a chuva em rajadas de dimante

Miles Ahead!
Explodir os pistões, derreter as velas
Decolar no rumo do céu
Aumenta o som, baby,
A estrada agora é nossa,
A estrada é feita de mel.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

you don´t know what love is



_Ora, ora quanto tempo...
_Como vai John?
_Bem, e você?
_Indo.
_Você sumiu, me deixou preso na caixa...
_Pois é, nem me fale. Não foi sem dor no coração, John, acredite.
_O que está rolando?
_Mudança, John, mudança...
_Hum... Sei. Mas agora que você abriu a caixa, é melhor colocar o Duke e a Billie para respirar um pouco, ela tem se queixado de opressão, melancolia... E o Duke, você sabe, sempre gostou de luz, detesta ficar amassado.
_Tudo bem, mas por enquanto gostaria apenas de ouvir suas baladas.
_Você se amarra neste meu disco, né?
_Dá para sacar?
_Claro, você tem dois!
_É que, se um dia os sulcos de um ficarem totalmente gastos, eu tenho o outro.
_Isso é de uma bobagem tremenda. Ter, ter... Deveria ouvir mais meu A Love Supreme para ver se consegue se desprender um pouco. O amor é antes de tudo desapego. A obsessão é a cruz dos condenados que querem ter a tudo e a todos.
_Isto está um pouco pesado, igual a caixa de discos... Vou mudar de assunto, se importa? Como vai o Miles?
_Carregando sua cruz, com saudade de seus carrões, de suas mulheres, de seus ternos italianos, dos óculos, do champanhe. Dentro da caixa não tem dessas coisas. O Miles sempre teve medo de sofrer, por isso, sofreu muito. Tinha medo de sentir dor.
_E você, o que fazia com a dor?
_Em alguns casos, tocava baladas.

ps: faixa de cima: "It´s Easy to Remember"; de baixo: "Say It (Over and Over Again)"

quarta-feira, 9 de julho de 2008

grandes encontros

Uma vez, eu estava assistindo aula de alguma coisa chata que eu não lembro mais o que era no terceiro colegial em Ribeirão Preto. Aí, o professor de literatura pediu licença e entrou na classe com um amigo, um sujeito de bigode, vestindo jeans, camiseta branca de mangas compridas e tênis marinho de lona, bolsa de couro a tiracolo:
_Pessoal, este aqui é um colega, professor de cursinho do Paraná, ele vai lançar um livro hoje...
Eu não fui ao lançamento. Meus interesses naquela época basicamente se resumiam a garotas, futebol e cerveja. Talvez por isso, no final da noite passei no bar onde o professor de literatura e o amigo dele tomavam uns drinques.
_Ô garoto, chega aqui, senta aí_, disse o mestre assim que me avistou.
Pedi um chope e fiquei olhando a dupla tomar vodka como se fosse água. Matei minha bebida, dei umas risadas e caí fora. Carregando eternamente a glória de já ter entornado umas com o grande Paulo Leminski:

o velho leon e natália em coyoacán

desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando

nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando

não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando

nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás de outro vindo
você e eu sonhando e dormindo

domingo, 6 de julho de 2008

sempre aos domingos

Lisboa, 14 de Março de 1916


Meu querido Sá-Carneiro:
Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental _uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto _que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurda da frase falará por mim.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias de alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a criança triste em que a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia 14 de Março, às 9 horas e 10 da noite, minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu seqüestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos onde pedem; estão enrolados muito alto; e assim nem a idéia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do “Marinheiro” ardem-me os olhos de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com brochura a descoser-se.
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena _cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde das folhas.
Foi por isso que o príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão grande vontade de chorar.
Pode ser que, se não deitar esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demora a copiá-la à máquina para inserir esgares dela no “Livro do Desassossego”. Mas isso nada roubará a sinceridade com que a escrevo, nem a dolorosa inevitabilidade com que a sinto.
As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.
Isto não é bem loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferente destes.
De que cor será sentir?
Milhares de abraços do seu, sempre seu muito seu

FERNANDO PESSOA

PS: Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanhã, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si próprio que dele são tão características.
Você acha-me razão, não é verdade?

sexta-feira, 4 de julho de 2008

granero existencial

As mudanças costumam ser
muito difíceis para quem
ainda houve discos de vinil
e carrega livros à granel

quinta-feira, 3 de julho de 2008

doctor freud

O homem no labirinto
pergunta ao minotauro-menino:
_Onde vai dar este caminho?
_Me dê sua mão. Eu te levo ao seu destino.

terça-feira, 1 de julho de 2008

domingo, 29 de junho de 2008

os eleitos



O amor não é privilégio
Estendido a todos
É castigo submetido a poucos

sexta-feira, 27 de junho de 2008

quinta-feira, 26 de junho de 2008

alfabeto

É mais ou menos assim:
Eles me pagam y, isso não dá para nada, e ainda assim eu trabalho z ao quadrado, correto?

Pois bem, então você entendeu que eu preciso de x para trabalhar menos w?;
sigamos.
Munido dessa equação, eu vou atrás do senhor x;
só que o senhor x quer me dar b para que trabalhe
s ao cubo sempre acompanhando o doutor k.

Não dá, com o perdão da rima pobre, entende?
Eu tento explicar que preciso de x, mas não posso acompanhar o doutor k ao cubo, sacou?;
é difícil dele entender porque ele só entende a língua do doutor k;
e eu tento de novo, simples:
preciso de x para trabalhar menos w e fazer n coisas que eu considero fundamentais para o bom desenvolvimento da vida humana na Terra.

Penso em explicar de novo, e me lembro dela, querendo pagar w mais y para eu simplesmente continuar respirando e fazendo coisas para o bom desenvolvimento da vida humana Terra.
Então, desisto, porque já está tudo pago, percebe?

Me despeço do senhor x com um forte abraço;
chego em casa e ligo a televisão;
duas moças falam de "A Serpente";
Sean Pean beija Jennifer Lopez na beira do desfiladeiro;
eu fico aflito e penso que preciso de x para trabalhar menos w e fazer n coisas que possam evitar que no mundo sejam produzidos novos filmes em que o mocinho sempre beija a mocinha na beira do desfiladeiro.

Está frio;
eu tomo gim.
eu ouço notas e somo letras;
não vai dar;
decido dormir.

No caminho do quarto, encontro o Nelson Rodrigues:
_Rapaz, todos os beijos do mundo são dados à beira de um precipício!
Eu não sei nada vezes nada, Nelson.

infância

nas costas do meu pai
cabia o mundo

nas costas do meu pai
pesava o mundo

nas costas do meu pai
o mundo não tinha fim

nas costas do meu pai
menino montado no mundo

nas costas do meu pai

com a certeza de que o mundo
nunca caberia em mim

quarta-feira, 25 de junho de 2008

I love you, porgy



difícil escolha, hein?

terça-feira, 24 de junho de 2008

obra-prima

desistiu da análise
para se conhecer
foi estudar artes plásticas

segunda-feira, 23 de junho de 2008

domingo, 22 de junho de 2008

capturou?

A minha alma escalou um prédio da Paulista
_A verdade é esta, não nos criemos mais ilusões
_Fugiu, mas foi apanhada pela antena da Globo
Que a transmitiu pelo infinito em HDTV

(adaptação de um poeminha de Mário de Sá-Carneiro, feito como ps de uma carta a Fernando Pessoa, escrita em Paris, agosto de 1915; no original, a Torre Eiffel e as ondas hertzianas)

o original

Andar e pensar um pouco,
que só sei pensar andando.
Três passos, e minhas pernas
já estão pensando.
Aonde vão dar estes passos?

Acima, abaixo?
Além? Ou acaso
se desfazem ao mínimo vento
sem deixar nenhum traço?

paulo leminski

sábado, 21 de junho de 2008

primeira chuva

Andou pelas ruas com
uma única frase na cabeça:

O outono se esvai,
o inverno impõem-se.

Achava-a bonita, dramática,
o melhor que já havia criado.

Na verdade, a coisa única,
de uma vida dedicada à poesia.

Mas tinha certeza de que o resto,
tudo, assim, súbito, viria.

Bastaria andar e pensar,
como um outro, de bigode, dizia.

O suor na testa ao atingir
o bico róseo de um morro.

Os becos úmidos e apertados,
o rebolo dos pelos das árvores.

No leito de uma rua,
o ventre de uma praça.

Ele corria a cidade-mulher
com a bengala de um cego.

Mas é claro:
o inverno que se impunha,
chegou de fato.

Uma chuva de granizo,
já as costas lhe doía.

Fraco, cansado,
sem sombra da mulher-guia,
apanhou uma tremenda pneumonia.

Morreu dias depois,
feliz pela certeza de que,
enfim,
era um poeta do Spleen.

Um ultra-romântico,
desses,
que não precisa escrever versos.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

quinta-feira, 19 de junho de 2008

águas revoltas

_Como se constrói um conto, já que ele é uma forma que pode prescindir dos elementos básicos da narrativa?
_Com palavras. Não se faz uma casa sem tijolos.
_Mas quem desenha a planta? Talvez os sonhos... Eu gostaria de contar outro, posso?
_É claro.
_É um dia de sol em uma praia tropical, dessas bem Brasil mesmo. Tudo é lindo, mas há o risco, o perigo. Ela corre entre as pedras, sabe? Pula de uma até a outra, se escora, está feliz, sem se importar com a força do mar, o mar é indomável.
_Você tem sonhado muito com o mar, não?
_Sim. Então, ela corre, como disse, seguida por um jovem, que não sou eu, logicamente, porque não sou jovem, e tenho medo e fico parado observando de longe. Na verdade, eu meio que sou a consciência do perigo, do risco, entende? Eles não têm a menor a noção do que estão fazendo, do que pode acontecer, e acontece, claro. Súbito, o pé dela escapa. Ela cai em um mar revolto, nervoso mesmo. Imediatamente, eu esqueço o medo e salto para resgatá-la, enquanto o jovem, que não sou eu, ou sou?, fica parado, perdido. Eu mergulho, imploro a ajuda dele, que não faz nada, e eu consigo encontrá-la, lânguida, meio desfalecida, mas feliz. Tomo-a nos braços, alcanço a superfície, e digo para ele, o jovem que não sou eu: “É como se segurasse minha própria vida nos braços”. O que isso quer dizer? Que o mar é o desejo?
_Vamos deixar por aqui hoje. Os sonhos também guardam uma história submersa.

um poema de jim dodge

Traduzido e enviado até mim pelo Joca no ano da graça de 2002.

"Seu sorriso é como assento de privada gelado.
Ele sacode minha mão como se a houvesse encontrado
morta depois de duas semanas num pântano.
Digo a ele que preciso de grana.
Às toneladas.

Eu quero um Lambourgini novo
lotado de absinto e ópio,
cair fora destas colinas encharcadas
uns anos em Paris.
Tento explicar:
estou em tal estágio de desenvolvimento artístico
que necessito de longo período
como marajá reflexivo.

O banqueiro saca minha carteira.
Examina meus dentes.
Reprime seus cacarejos
quando ofereço 20 sonetos miltonianos
como garantia do empréstimo.
Balança a cabeça (passei dos limites)
enquanto me despacha, apertando a mão.

´Péraí`, apelo, ´tenho dívidas e sonhos
não consigo sustar o derrame de meu saldo`.
´Sinto`, resmunga, ´não posso fazer nada`
e grampeia os papéis
de maneira semelhante à que
empalaria minha língua num formigueiro qualquer.
Olho pra ele, incrédulo.

E sob meu olhar fixo
o banqueiro começa a se transformar
numa porção de batatas fritas
empapadas de graxa;
depois num borrão
numa página do Gênesis;
e, afinal, em joaninha rola-bosta
empurrando bolinhas de merda
sobre a escrivaninha maior que meu quarto.
Enquanto acompanho essas mudanças mórbidas
não perco de vista sua cara balofa
brilhando qual carne podre.

Mas eis que suas outras facetas
vêm a mim:
pai, amante, garotão, garotinho -
nossos aparentados, apesar de distintos, corações
e mesma história humana
dando na mesma.
Apenas isto impediu
meu bom-senso de inconscientizá-lo
com uma meia cheia de moedas."

quarta-feira, 18 de junho de 2008

angústia criativa

muitas vezes,
dá samba
quase sempre,
dá choro

terça-feira, 17 de junho de 2008

segunda-feira, 16 de junho de 2008

fechamento

"Somos feitos da matéria dos sonhos;
nossa vida pequenina é cercada pelo sono"
A Tempestade, Ato IV , Cena I



Falta densidade à matéria;
a matéria das palavras, qual é?
Uma pergunta batida;
o pontinho piscando na tela do computador, e o relógio a materializar o tempo e a dar sentido para minha angústia.
A matéria tem que ter profundidade e a densidade das palavras do presidente "que afirmou ontem que nós possivelmente não consigamos terminar a nossa obra em quatro anos".
Eu, agoniado, preocupado com a matéria das palavras e com as palavras da matéria, e o meu coração doído pelas palavras na boca dela, me dizendo que eu nada tinha a temer, exceto as palavras, algo que ela tinha lido num livro do Fonseca, acho;
aí eu, sem coisa melhor pra falar, indagando de que matéria eram os sonhos, outra pergunta batida.
A matéria dos sonhos;
o pontinho piscando na página branca, eu sofrendo e lembrando daquela conversa com o Marçal Aquino, de que ele escreve à mão.
As palavras jorrando da mão do Marçal, que foi jornalista e que começa uma história sem saber como ela vai acabar e que escreve como quem fala com as mãos.
O John Fante que eu li na faculdade e me fez achar que era muito fácil ser escritor porque era só sofrer porque não se conseguia ser escritor e dizer para os leitores como era sofrer porque não se conseguia ser escritor, pronto;
e o cara ainda por cima morava em Los Angeles.
A crítica;
uma resenha sobre arte, quem sabe, em vez de falar do presidente;
"tudo isso serve menos para impregnar o ambiente de realismo e glamour do que para dar materialidade às coisas, evitando a reconstrução fria de época e transformando a película num espaço de convergências sensoriais e poéticas."
As palavras sem densidade na boca do presidente, com seu terno preto e novo;
o relógio a materializar a pressa, o editor a me cobrar a matéria.
Eu;
me deitando no divã e pagando aquela puta grana por tão pouco tempo, com a matéria dos sonhos escorrendo das mãos, de maneira tão rápida "porque Lacan pensou uma outra maneira de repensar a temporalidade inerente ao sujeito".
É, subverteu a cronologia da temporalidade, nada mais lógico.
Os sonhos;
eu sonhando em derrubar o presidente com a matéria dos sonhos para ganhar aquele prêmio que tem nome de posto de gasolina;
"e eu estou aqui, neste dia sonhado por tantas gerações de lutadores que vieram antes de nós, para reafirmar os meus compromissos mais profundos e essenciais, para reiterar a todo cidadão e cidadã do meu país o significado de cada palavra dita na campanha, para imprimir à mudança um caráter de intensidade prática."
O presidente pediu paciência e disse que um filho leva nove meses para nascer;
o editor pediu densidade e me deu dez minutos para terminar a matéria, com contextualização e clareza.
Eu, egoísta, que sonhava derrubar o presidente com a matéria dos sonhos, o presidente que tinha a obrigação de realizar os sonhos de todo mundo deste país.
Os dez minutos passaram rápido, não só porque Lacan havia pensado uma outra maneira de repensar a temporalidade inerente ao sujeito, mas porque eu escrevi bem depressa quando alguém gritou que ia entrar um calhau no lugar da matéria naquele pedaço de papel, que ainda era só um diagrama em uma tela de computador e que ia se materializar em um pedaço de papel.
Meu nome lá;
piscando no computador em cima da matéria que ainda não era papel sobre a densidade das palavras e de todos os meus sonhos.
O nome igual ao do meu pai;
que dia desses apareceu na matéria do meu sonho, assim como ela.
Meu nome lá, para embrulhar peixe no dia seguinte.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

quarta-feira, 11 de junho de 2008

clipes




Olhos de menino
Ornette nos ouvidos
cidade em desatino

segunda-feira, 9 de junho de 2008

quarta-feira, 4 de junho de 2008

atalhos

Information is not knowledge
Knowledge is not wisdom
Wisdom is not truth
Truth is not beauty
Beauty is not love
Love is not music
Music is the best

Zappa

terça-feira, 3 de junho de 2008

poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos


Alexandre O'Neill

domingo, 1 de junho de 2008

unhappy plots

analgésicos

Álcool

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas de auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo ---
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de oiro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eternizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante ---
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Mário de Sá-Carneiro

quarta-feira, 28 de maio de 2008

arqueologias/1994

Sou meu mestre
Meu discípulo

Um tudo sabendo
Outro desobedecendo

Um sentenciando:
A vida no escuro é um pulo

O outro
Pulando

(poeminha publicado na finada revista "Cão", do mestre Joca Reiners Terron, de quem, verdadeiramente, sou discípulo)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

manifesto literário 2

A comida diz muito sobre quem a prepara. Algo inconsciente, eu arriscaria, sem medo de parecer clichê, afinal, não sou um escritor _um aspirante a cozinheiro, talvez. Lógico, como tudo no mundo dos símbolos e das artes, isso ocorre de maneira sutil. Um prato, um conto, uma poesia, são mensagens enviesadas, de remetente conhecido e destinatário incerto. Para os que têm a bênção de poder decifrar este intrincado alfabeto, o que fica ao final do processo é uma verdade literalmente improvável, porém superior, quase metafísica, como a fé.
Uma modesta farofa de banana, companheira perfeita de astros da boa mesa, do badejo ao molho de camarão rosa, do picadinho ao pintado na brasa, não pode ser prova cabal como as cartas escritas por Luísa em “O Primo Basílio”. A combinação da fruta com o pó da mandioca jamais terá efeito de batom na cueca, torpedo telefônico ou correspondência extraviada, desastres que exigem muita conversa, baldes de lágrimas e um buquê de flores para serem resolvidos, mas que o bom Jorge (neste caso, o marido de Luísa) é capaz de perdoar, dando o assunto por encerrado, a página por virada.
Uma comida, um texto, um quadro, martelam, fingem que vão embora da nossa cabeça, das nossas papilas gustativas e, quando a gente menos espera, reaparecem do sobrenatural para encaixar mais uma peça do eterno quebra-cabeça dos signos, processo que os estudiosos chamam pernosticamente de significação. Era nisso que eu pensava enquanto olhava os pedaços do animal espalhados sobre minha mesa _tampo de vidro duplo temperado, 2mx90cm, base de mogno legítimo_ naquela noite em que o investigador Nelson me deu a honra de aparecer para o jantar, conforme meu convite da semana anterior.
Desde o início do inquérito, eu me esforçava para colaborar com a polícia e acabei criando com o tira, glutão e cozinheiro diletante, homem discreto e metódico (por que não dizer? um obsessivo também), certa proximidade. Entre as poucas coisas que sabia a seu respeito estava o fato de ele ser muito suscetível ao álcool. Por isso, assim que levantei a garrafa de sauvignon blanc, ele tampou uma das três taças (a correta, registre-se) com a mão direita.
_Não repare, vou ficar na água.
_Por mim, tudo bem, só acho uma pena esta entrada de cogumelos selecionados, cobertos com molho de champanhe e creme-de-leite fresco, passar tão mal acompanhada.
_Reservo minha cota de álcool para o prato principal_, respondeu Nelson elegantemente.
Acordo selado, não perdi a chance de entretê-lo com temas que me apetecem e que passam ao largo do mundo policial, incluído neste caso o subgênero literário. Falei sobre minha tese da linguagem culinária, do curso de semiótica gastronômica que pretendo criar e da necessidade de concisão nos enredos da cozinha contemporânea. Pedi que pensasse no assunto como uma nova abordagem da epopéia humana na Terra:
_É na comida, nas mesas, não nas folhas, que se escreve a verdadeira história dos povos_, eu disse.
Nelson ouviu tudo impávido, quero dizer, entre uma garfada e outra. Até eu disparar:
_Eu sei o que te traz aqui.
_A comida e o seu convite.
_Também, digamos. Mas sei que você ainda não está convencido, como está o delegado, de que não tenho ligação com o sumiço do crítico gastronômico...
_...e na impossibilidade de conseguir um mandato de busca vim vasculhar sua casa com a desculpa de aprender sobre arte e culinária_, atalhou Nelson.
_Vamos lá, fique à vontade, revire os armários, esvazie as gavetas e, se tiver coragem, as garrafas!_, respondi, erguendo um brinde.
O investigador deu um risinho diante de meu pocket show, mania que carrego dos tempos de menino: pilhado em situação desfavorável ou contrariado em meus objetivos, reverto o placar com uma mistura de ironia, espetáculo e certa agressividade, estratégia que minha mãe condensou na palavra “fusquinha”. Confesso que o expediente tem funcionado bem, apesar de o doutor Lorran dizer que isso é um recurso clássico, porém vazio, dos obsessivos.
O tira, no entanto, era um cara duro. Fez um elogio à qualidade do tempero e só voltou à história do crime, ainda assim, de maneira enviesada, na sobremesa:
_Seu amigo Jorge também tinha teses interessantes. Você parece ter aprendido com ele. Foi a convivência intensa?
Era verdade. Antes de desaparecer, Jorge, o crítico, estava trabalhando em um troço chamado teoria do hipopótamo. De maneira simplificada, era algo mais ou menos assim:
imagine o imenso animal chafurdando em um rio;
a parte que está à mostra, no caso, pedaços do dorso e da cabeça, é o prato que se apresenta sobre a mesa, é a história em primeiro plano que o chef quer contar;
o melhor, no entanto, está escondido, submerso, imenso, atolado em aromas, sabores e narrativas que só a memória consegue desvendar.
_Há peças que não se encaixam..._prosseguiu ele.
_No meu jantar?
_Não, o banquete estava perfeito. No inquérito que o delegado está montando para livrar a sua cara. Um sujeito no auge de uma carreira de sucesso, apesar dos muitos desafetos, não desaparece assim, sem mais nem menos. A única pessoa que convivia diariamente com ele nos últimos meses era você. O fato de não haver um corpo ou uma motivação não lhe tira da condição de principal suspeito.
_Nesse caso, continue fazendo a sua obrigação, investigue_, disse eu, novamente apostando na minha tática do “fusquinha”. E fui adiante:
_Mas não esqueça, obsessivos como você e eu são escravos da angústia quando se metem em alguma busca. Talvez você utilizasse melhor seu tempo se dedicando à arte_, completei, ao despachá-lo no elevador.
Três dias depois, Nelson me respondeu, via e-mail:

“Caro,
conforme você me sugeriu em nosso último contato, tenho procurado deixar de lado as angústias de sempre para refletir com mais clareza sobre a tal linguagem artística. Hoje mesmo, enquanto almoçava aqui ao lado do DP, indagava a respeito de uma suposta sublinguagem culinária, tão em voga ultimamente. Não fosse a fome, juro, nem teria desmanchado aquela combinação de signos, digo, de alimentos, tão perfeita: o feijão marrom, o branquíssimo arroz, duas verdes folhas de alface, ornamentadas com rubras rodelas de tomate e anéis roxos de cebola. E isso servia apenas como acompanhamento aos pequenos pedaços de carne alaranjados, forrados pelo louro e banhados pelas gostas rosas de pimenta. Em cima de tudo, um reluzente ovo estalado. Iuminado pelos raios de sol refletidos na garrafa verde de tubaína, a composição era uma perfeita obra, fiquei com dó de destruí-la, juro.
Mas, por sorte, me lembrei de suas orientações e, veja, percebi que o amigo se contradiz. A arte é algo que se encerra em si, você me ensinou. Já o prato estava ali para ser devorado, tinha a função de matar minha fome. Então, avancei sobre ele amassando, misturando, rasgando. Acho que finalmente aprendi: arte, de verdade, não enche barriga, não é isso? Bendita seja a coisa desprovida de conceito.
Sem mais para o momento,
saudações cordiais
ps1: você tem mesmo um jogo de facas muito bom, além de uma excelente técnica; nunca comi um animal tão bem cortado nas juntas, você é um mestre.
ps2: imagino que você deve se sair muito bem quando o assunto é picadinho.

É como eu disse: no limite, a comida que você prepara é capaz até de denunciá-lo, em um ato de perfeita traição. Eu havia errado (ou não, dr. Freud?) na escolha do prato principal, o leitão esquartejado. Mas é como diria o próprio Jorge na tese do hipopótamo: a história secreta dos pratos se constrói com o não-dito, queira o cozinheiro ou não. O Nelson sabia ler um prato.