quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

purificções/tocando a vida

Corria o segundo dia do curso teórico de formação de condutores e Antônio Carlos ainda não havia conseguido trocar palavras com os colegas de sala. No máximo, um rápido e tímido olhar com a moça à direita. "Deve ser por causa da minha idade", pensava ele, que decidira tirar a licença somente aos 34 anos.
No intervalo do café, ele se aproximou de Amália:
_Tirando carta?
_O que você acha?
A resposta desconcertou Antônio Carlos. "Como posso ser tão imbecil?", pensou.
Amália prosseguiu:
_Vou tomar a vida com as próprias mãos.
De volta à sala, a moça foi escolhida pelo instrutor para simular uma vítima de colisão na aula de primeiros-socorros. Antônio Carlos buscou forças e se ofereceu para participar do exercício. Ficaria responsável por tentar reanimar a acidentada.
"Tomar a vida com as próprias mãos", repetia para si mesmo Antônio Carlos. Assim que o instrutor deu o sinal, ele caminhou até o centro do círculo formado pelas carteiras, onde Amália jazia sobre um colchonete, ajoelhou-se ao lado do corpo, enfiou a mão esquerda nos fartos cabelos da moça e se abaixou. "Como ela é cheirosa."
A turma e o professor só perceberam que aquilo não se tratava de respiração boca a boca quando o casal começou a se abraçar entre suspiros.
Os dois demoraram para conseguir a carteira de motorista, mas continuam tocando a vida com as próprias mãos.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

purificções/manifesto literário

A verdade é que, se a gente parar para questionar a imbecilidade de tudo o que é levado muito a sério, não faz nada bem feito. Eu não sou assim, eu vou fundo. Por isso, logo após o Jorge ter me dito “cozinhar é cortar”, tomei aquilo como um mandamento e, é claro, comprei um excelente jogo de facas, francesas, lâminas de aço, seis modelos: legumes, carnes, peixes, desossadora, cutelo e multiuso.
Sempre tive essa mania, se resolvo nadar, adquiro o melhor equipamento e vou até a melhor piscina. No ano passado, apenas seis meses depois de ter iniciado meus treinamentos, completei uma travessia marítima de cinco quilômetros. Naquela época, meu analista sempre falava que eu precisava praticar esportes porque sou obsessivo com traços compulsivos e que uma atividade física me faria bem. Mas, quando escolhi a natação, ele não gostou. Até eu fui obrigado a concordar, passar horas, solitário, com a cabeça enfiada na água repetindo os mesmos movimentos e o mesmo trajeto é algo no mínimo estranho. Nem por isso desisti. Eu amo nadar.
Meu analista não se deu por vencido e afirmou que nós, os obsessivos, temos algum talento, digamos assim, para coisas que demandem alto grau de perfeição, mas que envolvem dose igualmente elevada e essencial de criatividade, tipo a cozinha e a literatura. Para me convencer, ele preparou uma lista com os nomes de muitos chefs e escritores consagrados que, segundo suas pesquisas, apresentam algum traço de obsessão ou compulsão. Eu sempre odiei as aulas de português e de literatura e comecei a me aventurar nas panelas. É claro, adquiri em um desses canais de televendas um magnífico jogo de oito peças. Tinha certeza de que estava indo bem. Até o Jorge, crítico gastronômico consagrado, vir aqui em casa e me ver de avental, com a barriga no balcão, picando cebola e chuchu para fazer um prato que eu havia batizado de risoto Carmen Miranda, afinal, eu tentava ser inovador.
Pois bem, o Jorge disse na hora que estava tudo errado, que o corte dos legumes, no caso a cebola e o chuchu, não estava à altura da consistência do prato, no sentido contrário às fibras, e deixaria a refeição com um aspecto horrível. A minha mulher acompanhava a cena e ficou zangada, argumentando que eu poderia até não saber cortar, mas deixava tudo muito gostoso e tinha criatividade para inovar nas receitas. Isso, na opinião dela, era o que de fato importava para um aspirante a cozinheiro que usava as panelas para se distrair.
O Jorge rebateu. Segundo ele, os pedaços eram desproporcionais e não tinhamharmonia e isso levaria, invariavelmente, o degustador para longe da história que aquela combinação de alimentos _leia-se arroz arbóreo, cebola, vinho branco seco, caldo de peixe, camarão, cebola e chuchu_ queria contar. Em seguida, ele comparou os risotos aos contos, disse que ambos precisam causar um impacto quase imediato no apreciador, vencendo-o por nocaute, caso se tratasse de uma luta de boxe. Essa tese havia transformado o Jorge no crítico gastronômico do momento, com coluna em revistas e blog na internet.
_A combinação não está boa, o corte está péssimo e, além disso, tem pedaços demais, ele enrola muito, a gente demora para entender que história ele quer contar, se é que quer contar alguma. Todo prato tem de transmitir alguma coisa, é o que eu sempre digo_, explicou ele.
_Para mim, está bom. Os pratos dele são saborosos, têm conteúdo e contam muitas histórias porque ele aprendeu com a mãe dele, que aprendeu com a mãe dela e assim por diante. Todas as receitas têm o seu valor. Ele tem é que continuar cozinhando. Você nunca cozinhou nada, só sabe falar do trabalho dos outros_, disse a minha mulher.
_Não interessa. Cozinhar, antes de qualquer outra coisa, é cortar os alimentos”, decretou o Jorge, parafraseando um chef famoso que eu não lembro o nome.
Ela estava furiosa e pretendia levar adiante a discussão, mas eu cortei rente, com o perdão do trocadilho:
_Ele está certo, assunto encerrado.
Desde então, passo o dia com a faca na mão, em frente ao cepo, fatiando tudo: legumes em tiras, em rodelas, triangulares, em forma de estrelinha; salsa e cebolinha que parecem pó; carne desfiada no sentido das fibras, cortada em medalhões, em escalopes, em bifes e em cubos; abobrinha batidinha na faca; frango separado nas juntas e à passarinho. Fui obrigado a contratar uma cozinheira pra aproveitar o resultado do meu trabalho e passei a colaborar semanalmente com um orfanato das imediações de minha casa.
Praticamente abandonei a natação e não dou as caras no escritório. Meu sócio está puto. Paciência. Mês passado, venci um grande desafio, superei a penúltima barreira do mundo das facas, a milenar arte do sashimi. Devo dizer que o cônsul japonês, aqui trazido pelo Jorge, chorou ao saborear os nobilíssimos pedaços de atum e salmão. Aquilo me comoveu. Se eu fosse um poeta, faria até um haicai, pensei em algo como:

Japonês no ocidente
finas fatias de peixe
shoyo de lágrimas

Mas, como não sei escrever, eu corto. Acho que nem preciso dizer que tive alguns acidentes de trabalho. Ontem, a ponta do meu dedo indicador se transformou em uma lembrança, um borrão no exame datiloscópico da Polícia Civil. O importante é que aprendi direitinho, talvez eu seja hoje o melhor picador do mundo. Quem sabe? Isso só a disputa que está sendo organizada pelo guia de culinária com auxiliares de cozinha irá responder. Peguei muito gosto pelo trabalho, tanto que passei muito tempo sem fritar um mísero ovo. Mas e daí? O Jorge sempre me socorria:
_Cozinhar é cortar!
A única coisa ruim dessa história toda é que a minha mulher ficou triste, disse que eu estava meio pirado, alienado, sem criatividade, e foi embora. Não é verdade. As sessões de análise com os conselhos do doutor Lorran finalmente deram resultado. Eu transformei a obsessão em algo útil e criativo: trabalhei com vontade na invenção de uma faca para humanos. Um sucesso. Superei a última barreira. Os policiais podem continuar investigando que nunca encontrarão tantos e tão pequenos pedaços do crítico gastronômico no fundo da represa Guarapiranga. Tenho certeza de que ele ficou muito orgulhoso. Talvez agora eu cozinhe um pouco.

receita de felicidade

amor,

o picadinho de mignon é super simples:

-tempere a carne com sal, pimenta, azeite e um pouquinho de molho inglês;

-frite um pouco na tefal (sem óleo)e reserve;

-faça na mesma frigideira uma refoga de cebola, tomate, pimentão (tem na geladeira), vinho tinto e um pouco de caldo de carne;

-volte a temperar levemente a carne com um pouco de mostarda escura (ou de dijon), cat e pimenta;

-misture as duas partes, refogue um pouco, e cubra com bastante cheiro verde (comprei ontem) picado;

-faça uma farofa de cenoura para acompanhar (frite a cebola na manteiga, coloque a cenoura ralada e acrescente a farinha de mandioca).

bjo
te amo

-fica muito bom usar as ervas francesas que estão dentro da lata azul

monk, by marçal



"Tínhamos dormido em um mosteiro desativado, em companhia de duas garrafas de vinho. Uma noite sem grilos ou piados de pássaros. Sem lua. Uma noite tão silenciosa que era possível escutar todos os ritmos da respiração dela ao meu lado. Monk tinha morrido dois dias antes. Vimos a notícia na TV cheia de chuviscos de um bar. Erguemos um brinde a ele no mosteiro. Ela comentou: “Sem ele o mundo fica um pouco pior”. Uma noite tão boa e quieta que se Deus resolvesse visitar o mundo naquela hora, certamente andaria na ponta dos pés.

(...)

Tempos depois, numa casa de campo muito limpa e arrumada, ideal para começar algo e não para terminar, eu me lembrei desse episódio. Falei do mosteiro, do jipe, do velho e do menino. Ela mexeu as sobrancelhas como se quisesse sublinhar um sorriso irônico: 'Isso nunca aconteceu comigo. Deve ter sido com outra'.

(...)

Às vezes eu a vejo na televisão. Como acabou de acontecer agora, num quarto de hotel cheirando a pinho, mas que é sujo, como são sujos todos os hotéis que se propõem a cheirar a pinho.

Na televisão, ela não me pareceu tão alegre. Mas pode ser que fosse o script de sua personagem. Ou não _ e talvez ela estivesse mesmo meio triste. Como a maioria das pessoas. Como o resto da vida sem Monk."

(trecho de "Monk", de Marçal Aquino, conto do livro "Geração 90 - Manuscritos de Computador"/Boitempo Editorial)

cry lester

cry billie cry

Um dia chuvoso é ideal para ouvir Billie Holiday. O acompanhamento clássico é uma generosa dose de bourbon, não importa a hora. O bourbon deve seguir Lady Day com a mesma devoção com que Lester Young e seu sax a acompanharam até o inferno.

Hoje, eu começaria com Stormy Weather (Arlen/Koehler):

"Don't know why, there's no sun up in the sky
Stormy weather, since my man and I ain't together
Keeps raining all the time


Life is bare, gloom and misery everywhere
Stormy weather, just can't get my poor old self together
I'm weary all the time, the time, so weary all of the time"


E terminaria com “How Deep Is the Ocean”:


"How much do I love you?
Ill tell you no lie
How deep is the ocean?
How high is the sky?

How many times a day do I think of you?
How many roses are sprinkled with dew?

How far would I travel
To be where you are?
How far is the journey
from here to a star?

And if I ever lost you, how much would I cry?
How deep is the ocean?
How high is the sky?"


Ps:
-ambas as canções podem ser encontradas no cd da coleção de jazz da Folha dedicado à Billie, atualmente nas bancas;
-bom disco, boa seleção, boas versões, uma Billie encharcada de blues em standards como “Love For Sale” (Porter), “Blue Moon” e “How Deep is the Ocean” (Berlin);
-por ironia, Lester Young aparece em apenas duas faixas, mas Oscar Peterson é o responsável pelo piano em muitas, assim como Norman Granz é o produtor da maioria delas;
-custa pouco nas bancas e muito menos ainda nos sebos;
-pode exagerar na dose.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

plat du jour: picadinho semiótico

Caro,

conforme você me sugeriu em nosso último contato, tenho procurado deixar de lado as angústias de sempre para refletir com mais clareza sobre a tal linguagem artística. Hoje mesmo, enquanto almoçava, indagava a respeito de uma suposta sublinguagem culinária, tão em voga ultimamente. Não fosse a fome, juro, nem teria desmanchado aquela combinação de signos, digo, de alimentos, tão perfeita: o feijão marrom, o branquíssimo arroz, duas verdes folhas de alface, ornamentadas com rubras rodelas de tomate e anéis roxos de cebola. E isso servia apenas como acompanhamento aos pequenos pedaços de carne alaranjados, forrados pelo louro e banhados pelas gostas de pimenta rosa. Em cima de tudo, um reluzente ovo estalado. Iuminado pelos raios de sol refletidos na garrafa verde de tubaína, a composição era uma perfeita obra, fiquei com dó de destruí-la, juro.
Mas, por sorte, me lembrei de suas orientações. A arte é algo que se encerra em si, você me ensinou. Já o prato estava ali para ser devorado, tinha a função de matar minha fome. Então, avancei sobre ele amassando, misturando, rasgando. Acho que finalmente aprendi: arte, de verdade, não enche barriga, não é isso? Bendita seja a coisa desprovida de conceito.

Sem mais para o momento,

saudações cordiais

domingo, 27 de janeiro de 2008

seres ruminantes

Da série "você nota que as coisas estão se tornando complicadas quando":

-descobre que o disco que não sai da sua vitrola (sim, eu tenho vitrola) era usado pela poeta suicida Ana Cristina César para "ruminar uma ira embaladora contra a vida".

Trecho da carta escrita por ela em 15/04/1977 à Clara Alvim:

"TE ESCREVO OUVINDO THELONIOUS MONK,
que eu comprei em dia de grandes emoções, quando pintou um dinheiro de um artigo que publiquei na "Colóquio", fui vender os dólares no câmbio negro confortável, e voltei tentando me desvencilhar de um namoradinho belo mas enrolado - daqueles que falam aos olhos mas não ao bom senso. Foi ele que me indicou o disco do Thelonious, "The man I love". Compre, ouça com bons sensos, ah insensatez. Aí boto esse piano pra ouvir e rumino uma ira embaladora contra a vida. Por que são certas iras tão embaladoras?"

ps meu:
-"The Man I Love" é um puta disco (acho que não é coletânea) que eu achei no sebo do Erik (rua Arthur de Azevedo, Pinheiros, SP);
-foi gravado nos anos 70, provavelmente em Londres, para o selo inglês Black Lion;
-traz um Monk acompanhado de Al McKibbon (bass) e Art Blakey (drums) em versões magníficas da música-título de Gershwin e de seu clássico (dele, Monk) "Ruby My Dear";
-a ausência de metais deixa o pianão do bruxo escancaradado, um escândalo;
-é pena que nunca vi o danado em cd no Brasil;
-"I Mean You", "Little Rootie Tootie", "Misterioso" e "Trinkle Tinkle" completam o disco;
-a pedido do Conrado Corsalette, meu rockstar preferido, tô ensaiando descolar um lugar para copiar o disco em cd e presentear os amigos;
-mas, cuidado: ele pode ser perigoso aos domingos.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

SP, 454

No ponto de ônibus
A cega aflita:
_Que ônibus é esse?
Luz! Luz!
O moribundo grita

dry-men

_Que descuido. Molhei você inteiro...
_Tudo bem, o meu martini continua seco. My name is James_, responde o velho Bond, taça na mão, à vilã de biquini