quarta-feira, 29 de outubro de 2008

cão

Cão passageiro, cão estrito,

cão rasteiro cor de luva amarela,

apara-lápis, fraldiqueiro,

cão liquefeito, cão estafado,

cão de gravata pendente,

cão de orelhas engomadas,

de remexido rabo ausente,

cão ululante, cão coruscante,

cão magro, tétrico, maldito,

a desfazer-se num ganido,

a refazer-se num latido,

cão disparado: cão aqui,

cão além, e sempre cão.

Cão marrado, preso a um fio de cheiro,

cão a esburgar o osso

essencial do dia a dia,

cão estouvado de alegria,

cão formal da poesia,

cão-soneto de ão-ão bem martelado,

cão moído de pancada

e condoído do dono,

cão: esfera do sono,

cão de pura invenção, cão pré-fabricado,

cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,

cão de olhos que afligem,

cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!

Alexandre O´Neil

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

é só jogo de bola



Como e com quem cheguei ao pequeno estádio, não me lembro, nem interessa tanto. O que importa é que eu estava lá, na beira do campo, pronto para ver de perto mais um entre tantos jogos da tarde de sol do interior.

Naquele gramado, zona rural de São Joaquim da Barra, brancos, pretos e um descendente de índios, apelidado Garrincha, correriam atrás da bola.

A data exata também não me lembro, mas a década de 70 findava, e o legendário craque das pernas tortas enfrentava uma barra pesada, pouco dinheiro, muito bebida, problemas emocionais.

Havia alguns anos ele disputava jogos caça-níqueis como aquele pelo país em um time chamado Milionários (ironia?), junto com outros ex-craques.

As pequenas cidades do interior faziam festa para recebê-los. Garrincha era a principal atração.

Mesmo aos meus olhos de menino, porém, nem tudo era alegria. Fui ao vestiário levado por um tio. O homem de quem tanto falavam os mais velhos me pareceu triste e abatido.

Olhei os pés de Garrincha. Não muito grandes, redondos, inchados. Ele colocava as meias em lento ritual. Notou minha presença e sorriu ternamente.

Muito distante de sua melhor forma, dentro de campo ele se limitou a ser uma caricatura. Parecia não querer esconder da distinta platéia a melancólica condição.

O craque da Copa de 1962 desfilava suas dores em um modesto estádio, arquibancadas de madeira. É claro, ninguém estava ali para ver dribles desconcertantes que fizeram dele a “alegria do povo”.

Com um misto de sadismo, dever e complacência, éramos todos, inclusive eu, testemunhas do crepúsculo trágico de um grande astro, talvez da morte de um jogo que tinha goleiro, dois laterais, dois zagueiros, um volante, dois meias, dois pontas e um centroavante.

Em janeiro de 1983, Garrincha estaria morto, e eu passaria a entender um pouco mais sobre a tragédia humana.

A glória, o fracasso e a eternidade. Tudo ali, naquele momento em que Garrincha colocava calmamente as meias.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

jardim de primavera

Amoras no canteiro
caídas
Meus pés-de-pato
despedaçam corações

vermelho
explode

no meio da grande
avenida

terça-feira, 21 de outubro de 2008

oração a são joaquim

E se a vida for recanto, recato?
Se Ulysses foi um puta equivocado?
Ficar parado, um grande barato.
Viver assim assim.
No lugar onde quem roda
é a Terra.
Onde a vida tem
começo
meio
fim.

sábado, 18 de outubro de 2008

o abismo das esquinas



Na canção "São João Xangô Menino" Caetano (ou Gil, em "Montreux ao Vivo") diz: "fogo fogo de artíficio, de beleza sem razão".
Eu peço que tomem conta do menino, Xangô, ai são João Xangô menino, e vejo o rojão rojão explodindo explodindo no céu de São Joaquim da Barra.

***

Em "Trilhos Urbanos" (1979) Caetano anda de bonde e diz que tudo é "bondever".
É bondeouvir.

***

E aí chega o "Velô", o disco de 1984, que eu ganhei de Natal. Começa pelo encarte, em formato revista, com o poema concreto "Pulsar", do Augusto de Campos, na contra. Caetano músicou, preencheu de silêncio a palavra.
Onde quer que ela es te ja.

***

"Velô" é uma declaração de amor à línguagem. Numa época em que a música brasileira ainda se preocupava com isso. E aí é preciso reconhecer a influência de Paulo Leminski na vida/obra caetanística. Numa carta de setembro de 1978 ao poeta Régis Bonvicino, o poeta comenta o "Muito" (o do fogo fogo de artifício e de "Cá Já" e "Sampa"), diz que está ouvindo o disco o dia inteiro, faz elogios etc...
Caetano foi até Curitiba.
Caetano gravou Leminski e sua "Verdura" no "Outras Palavras" (1979).

***

"Velô" tem "O Quereres", aquela que diz "onde pisas o chão minha salta/e ganha liberdade na amplidão", fala da "dulcíssima prisão" dos amores.
Não é fácil traduzir o desejo. Ele traduziu.

***

1984. E o disco termina com ... Adivinha? "Língua": "Flor do Lácio sambódromo/Lusa América Latim em Pó"; antes rola um Ritchie humilhando Bowe em "Shy Moon", a canção também da lavra caetanística.
E assim se foi 1984. E assim eu volto quando quero a 1984.

***

Vai que eu não pare de ouvir Caetano agora? E então eu recuo até o "Araçá Azul" (1973) só para ouvir o bolero "Tu Me Acostumbraste", e aí, na segunda parte ele começa a cantar de um jeito como se tivesse com o nariz tapado, ou, sei lá, atrás da porta da cozinha, com uma bacia ao lodo do rosto, tipo auto-falante, brincando de rádio, brincando de imitar as coisas que ouvia no rádio quando era pequeno, Célia Cruz, quando era um niño de Jesus; e eu me lembro da minha mãe escolhendo arroz e da bacia atrás da porta daquela casa em que minha irmã nasceu, onde eu cantava Roberto Carlos, e minha mãe dizia que eu tinha os olhos fundos como os dele;
onde eu perfeitamente podia ter dado à minha irmã o nome de Maria, talvez Bethânia.

***

Vai que eu volte outra vez para o "Velô"? Vai que eu ouça o "Homem Velho", em "memória de meu pai, a Mick Jagger e a Chico Buarque, que agora tem 40 anos"? Vai que eu acredite que "a solidão agora é sólida, uma pedra ao sol"?
Vai que eu me levante agora para dar um beijo no meu pai, "para deixar a vida e a morte para trás"?

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

eu queria ser xico sá



ps: este post não vale ser lido sem ser ouvido.

Por Xico Sá:

EU QUERIA SER BILL MURRAY


Eu queria ser Bill Murray. Em Flores Partidas, assim mesmo, broken flowers, do Jim Jarmusch. Indo em busca do filho que talvez não tenha tido. Bill Murray parado. Não diga que silêncio; diga “não ouço nada”. Bill Murray on the road, no sossego, na moral e na elipse. A máquina de escrever cor de rosa, a motocicleta cor de rosa, flor de obsessão, rosa. Bill Murray d.Juan em fim de feira _a festa acabou, José, para onde?_ e a carta anônima, o vizinho Sherlock com ácido, a busca do rebento que não teve, teve?, não importa. Eu queria ser Bill Murray diante daquele gato, nem carecia a Sharon Stone, o gato feito à imagem e semelhança de Bill Murray, felino metafísico da porra. Ali, dizendo, o gato: “Você veio aqui, velho Bill, com segundas intenções, não, não sou teu filho, hombre”. Eu queria ser Bill Murray naqueles sonhos, a reprise. A lolita na vitrine, Lola, bundinha americana, mas safada, é o que vale. Bill Murray vaga pela América, ô, mas num me venha com essa de metáfora da América, apenas uma história sem final, como todo enredo de busca, como a própria cara de Bill Murray, procura. Eu queria ser Bill Murray emparedado na quarta parede, sem foco, boiando nos teus lindos olhos de cigana oblíqua. E basta.

(publicado no Carapuceiro em novembro de 2005)

mas você tem certeza?

Eu sei que Madeira de Melo perdeu a batalha na Bahia em 2 de julho de 1823.
Eu sei que o nome do Lobão é João Luíz Woerdenbag Filho.
Eu sei que a água não ferve na mesma temperatura em altitudes diferentes.
Eu sei fazer feijoada portuguesa e arroz de polvo.
Eu sei a letra de Faroeste Cabloco, Night and Day e Light My Fire.
Eu sei declamar pelo menos uma poesia.
Eu sei que uma noite pode mudar o mundo.
Eu sei que as mitocôndrias estão no citoplasma das células eucarióticas.
Eu sei chegar no bar do Celso sem pedir informações.
Eu sei dirigir um carro.
Eu sei que meu pai nunca gostou que eu tivesse cabelos compridos.
Eu sei _só eu sei_ quem quebrou aquele vaso que minha mãe tinha na sala.
Eu sei o que eu faria se ganhasse na loteria.
Eu sei o que eu faria se voltasse no tempo.
Eu sei o que eu não faria se voltasse no tempo.
Eu sei que o Dado Dalabella é filho do Carlos Eduardo Dolabella, que fazia um jornalista no seriado Sucupira.
Eu sei a escalação do São Paulo campeão brasileiro de 1977.
Eu sei que você tem pintas na perna e uma entre os peitos.
Eu não sei o que fazer.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

self-portrait

Neste espelho, eu te imploro:
chega ao menos por hoje
lágrima incansável
que esta alva cara lava

Deste rosto, eu te suplico:
cessa de minar feito bica
de cortar minha pele
de sulcar de sal a vala

Deste lado, eu decido:
já é tempo de enxugar-te
no coração, carregarei a chaga
na camiseta, o sudário

snaporaz



Nesse momento, Zuzana, ou melhor Vicky, quero dizer, muitas Zuzanas, umas quatro ou cinco delas, entraram no bar, ao lado do irmão do Ahmed, do primo do Ahmed e do próprio Ahmed. Olhando bem de perto, vi que todas as mulheres eram malvadas e, principalmente, artificiais, forjavam pintas na pele, carregavam litros de silicone nos peitos e sorrisos frios nos lábios. Os árabes riam alto, faziam pregações contra a monogamia, brindavam com mojitos o declínio do macho-cristão-ocidental, iniciado no dia em que Papa Hemingway deu sua primeira brochada.

a divisão dos justos

Não avancem sobre a solidão do meu sono.
A levitação é um ato da matéria
que recuso admitir.

Meu corpo é dor
e por isso deve ser coberto,
fixado ao chão sob grandes pedras.

Não esgotem os monstros da vigília.
O lugar do pensamento não é um condomínio
[fechado,
como um espaço onde é possível abstrair a
[essência da insônia.

Não arrebentem meu saco com os filhos
[da simbologia,
aqueçam a dúvida perante a divindade
e aceitem que não faço parte de nada,
somente o quase nada que se parte
na partilha dos justos

(marcos losnak)

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

i really want to see You



Oração no Saco de Mangaratiba

Nossa Senhora me dê paciência
Para estes mares para esta vida!
Me dê paciência para que eu não caia
Pra que eu não pare nesta existência
Tão mal cumprida tão mais comprida
Do que a restinga de Marambaia!...

(Manuel Bandeira, 1926)


Oração em um Bar Qualquer de São Paulo

São Pascoal da Auto-Estima me dê força
Para estes poços para esta lida!
Pra que eu não aceite a insignificância
Tão bem cumprida tão mais comprida
Do que seu conta-dose na garrafa de Black...

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

bilhete



Adeus, coisas que nunca tive,
dívidas externas, vaidades terrenas,
lupas de detetive, adeus.
Adeus, plenitudes inesperadas,
sustos, ímpetos e espetáculos, adeus.
Adeus, que lá se vão meus ais.
Um dia, quem sabe, sejam seus,
como um dia foram dos meus pais.
Adeus, mamãe, adeus, papai, adeus,
adeus, meus filhos, quem sabe um dia
todos os filhos serão meus.
Adeus, mundo cruel, fábula de papel,
sopro de vento, torre de babel,
adeus, coisas ao léu, adeus.

Paulo Leminski

jairo jones, o boxer

_Não se entrega Jairo Jones, assim ele vai te fazer beija a lona no próximo round. Presta atenção enquanto enxugo tua cara: toda vez que ele solta o jab de direita, ele abaixa demais a guarda; então, nessa hora, você se esquiva, recua meio passo para não tirar ele do teu raio de ação, e solta o cruzado no queixo dele, no queixo, entendeu?
_Entendi, entendi, deixa comigo.
_Vai, já tocou o gongo, vai!
“Isso, vem filhadaputa, vem, você vai ver o que vai te acontecer. Você vai chegar, eu vou dar meio passo... O que é que eu tenho de fazer mesmo? Jab, direita, esquer”
_Caralho, que merda, Jairo Jones. Ô Meio-Quilo, vai lá abanar o Jairo e jogar água na cara dele.

Jairo Jones gasta todo o dinheiro que ganha nos ringues com bebidas e mulheres. Chega a tomar uma média de trinta socos na cara por luta. Está ficando com a memória lesada, mas não tem coragem de enfrentar uma tomografia porque morre de medo de ficar preso dentro da máquina.
Já falei que Jairo Jones gasta todo o dinheiro que ganha nos ringues com bebidas e mulheres?

terça-feira, 7 de outubro de 2008

separações

_Vá na frente. Quero pelo menos poder olhar sua bunda.

***

_Então era isso que ela sentia todas as madrugadas enquanto me esperava!

***

_Eu sabia que você era um amigo carinhoso... Mas achava que fosse dele.

***

_É muito bom poder sair pelos dois lados da cama.

***

_Posso baixar o seu disco do Pixinguinha?

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

por um lindésimo de segundo

tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo feito
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu


tudo em minha volta
anda às tontas
como se as coisas
fossem todas
afinal de contas

(paulo leminski)

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

anorexia

a última coisa
que comi
foi você