segunda-feira, 31 de março de 2008

purificções/a conferência 1



simone só consegue pensar em miles e fica furiosa por causa disso. sabe que não está nos estados unidos, mas sempre que olha pela janela a paisagem põe para rodar na sua cabeça os acordes sentimentais de walkin, nada mais justo porque tudo é américa e ali também vive um monte de gente preta e alegre, como em cuba, de onde ela acaba de chegar e, além do mais, se existem coisas que rasgam e ao mesmo tempo alinhavam de ponta a ponta o continente comprido, elas são a música e a sensualidade dos negros, a mesma que deixou juliette literalmente de quatro na frente de davis em paris. apesar, mon cherry, de que juliette nunca se importou muito em ficar de quatro para conseguir uma boa canção ou um papel no cinema, até jean-paul, que não é um primor nesse ramo artístico, convenhamos, lhe ofereceu uma das suas composições, e ela, é claro, aceitou de imediato.
simone sorri.



edson tenta dominar com a canhota, mas é tocado pelo zagueiro, perde o equilíbrio e vê a bola escorrer pela lateral. será um dia um ruim, ele sente, com as mãos na cintura e com os dentes muito brancos, que aparecem logo em seguida, quando ele grita e gesticula com as mãos grossas e pretas e pula e corre. vou chegar antes, vou chegar antes, mete, enfia, porra, o chutão do filha-da-puta para a lateral, vai ser foda, porra, eu já sabia, eu sabia, jogar aqui está cada vez mais difícil, como em todo lugar, porque os caras só querem ganhar da gente para virar herói na cidade e beber de graça e comer um monte de loiras de graça, que nem a da noite de ontem, aquela mulher linda que entrou no hotel pelos fundos, esquece, Pelé, você precisa se concentrar para bater logo esses merdas e voltar para a loira de ontem, não, para voltar para Santos, porra, olha aí, gol deles.
edson bufa e abaixa a cabeça.

sexta-feira, 28 de março de 2008

purificções/olhos de motordrive

A viagem ao Rio é uma idéia da mulher, sob o argumento de que adoraria passear com ele de mãos dadas no calçadão. Os dois ficam hospedados no Leblon, exigência do homem (ou dela?), um profundo conhecedor dos modos e das histórias da zona sul carioca, mesmo sem nunca ter saído de São Paulo antes.
À noite, de volta do Baixo Gávea, ela desliga o ar-condicionado do quarto.
_Quero guardar comigo o calor do seu corpo_, justifica.
O homem pensa que aquela é uma forma elegante, apesar de clichê, de anunciar uma despedida. Mas se cala. Decide apenas que não concordará em apagar a luz. Inútil. Ela também exige claridade. Desde menina, imagina ter uma câmera embutida nos olhos, um jogo de lentes que capta as imagens devidamente enquadradas e congeladas por seus cílios longos e tremelicosos, em uma infinidade de cliques que deixaria impressionado o mais rápido dos fotógrafos.
Os dois suam uma noite. Um longo silêncio (na verdade mais de 24 horas) se segue até ela cortar a melancolia da segunda-feira ensolarada. Quando o avião faz a curva sobre a baía, a mulher contempla o azul, registra as últimas imagens daquele álbum e anuncia:
_Vou morar em um lugar que tem mar.
_Rio?
_Marselha.

quarta-feira, 26 de março de 2008

memórias sentimentais/ribeirão preto

sinto falta de sair da redação de madrugada e respirar a brisa fresca e úmida da minha infância da alta mogiana, dos rios pardo e sapucaí.

sinto falta das casas tão simples da vila tibério, das calçadas de cimento sempre muito limpas, das árvores baixas e dos portões abertos.

sinto falta de uma luz forte, de um céu que era sempre azul, mas que ao cair da tarde derramava um tom amarelado sobre a cidade.

sinto falta de olhar pela janela e ver a vida a passar em câmera lenta, a caixa d´agua de uma escola pública onde as crianças formavam fila antes de entrar nas classes e havia pipoca e quebra-queixo na porta.

sinto falta de um calor que empapava a camisa, molhava a fronte e escorria até a boca com um gosto salgado de eterno verão.

sinto falta até da angústia aos domingos, o jornal à beira da piscina, o telefonema da mãe, a praça lotada e o almoço na churrascaria.

sinto falta dos jogos da segunda divisão, do rádio ligado, da barriga pro ar e de uma nuvem que deslizava suavemente pela janela.

domingo, 23 de março de 2008

purificções/desterro 2



depois de ter percorrido todos aqueles pântanos do sul, meu ônibus finalmente aportou na rodoviária de nova orleans, na louisiana, onde eu reiniciaria minha busca pela blue note perfeita, quero dizer, pela zuzana perfeita, ou melhor, quase-perfeita, sei lá, as coisas já estavam ficando muito confusas, malvadas e artificiais. sem reserva e grana para hotel, fui direto à bourboun street, na casa de strip-tease e... bingo! um cartaz trazia fotos de zuza, ou melhor de vicky, em cenas de seu show diário, mostrando os pés ao público e aos caras cheios de tatuagens. mas, como as portas ainda não estavam abertas naquela hora da tarde, resolvi esperar um pouco no bar de blues, com o coração disparado em milhares de blue notes diante da possibilidade de reencontrar zuzana Z desde o nosso último encontro no norte da frança, naquela manhã em que zinedine zidane e charles aznavour cantavam para mim músicas francesas de influência árabe.





ainda do lado de fora do bar comecei a ouvir os sax tenores de lester young, coleman hawks e ben webster e aí veio a voz da billie holliday dizendo que o homem dela não queria saber do seu amor e daquele jazz todo e quando eu vi já estava em frente ao palco. para minha surpresa, a banda era formada por brancos e então eu percebi que até o orgasmo, quero dizer, que até aquele jazz todo, havia se tornado um troço artificial, igual às mulheres de camisetas molhadas, malvadas e polifônicas que assistiam aos longos embates de braço-de-ferro dos hemingways espremidos nas poltronas dos modernos 777-300 da united.

(trechos do conto "Desterro", escrito em 2005 e ainda inédito)

sábado, 22 de março de 2008

isto é um conto

"Vou abrir a porta
Mais uma vez pode entrar
É Dia das Mães
Eu resolvi lhe perdoar"

(trecho de um samba de nelson cavaquinho, "cuidado com a outa")

ps: e bem poderia ser de a. p. tchekhov

quinta-feira, 20 de março de 2008

alexandre o´neill

Escritor _ homem casado?
Sempre escritor-de-domingo.
Não tem o momento azado,
sua arte é pingo a pingo.


(poeta português em "Anos 70 - Poemas Dispersos")

simples. como uma boa canção



Fala sério. Esta é a prova de que uma canção eterna dispensa qualquer cabecice político-ideológica-sentimentalóide. Isto está martelando na minha cabeça há duas semanas...


"How much do I love you?
I'll tell you no lie
How deep is the ocean?
How high is the sky?

How many times a day do I think of you?
How many roses are sprinkled with dew?

How far would I travel
To be where you are?
How far is the journey
From here to a star?

And if I ever lost you
How much would I cry?
How deep is the ocean?
How high is the sky?"

fim do lado A




Última nota
Precisa

Silêncio

O braço da agulha
Aterrissa

segunda-feira, 17 de março de 2008

purificções/desterro 1



é bem verdade que não demorou para eu trocar o pôster de miss august pelo de miss november na porta do guarda-roupa, mas também só até a traidora da patti mcguire se casar com o jimmy connors, o que me obrigou a torcer pelo bjorn borg em todos os circuitos do tênis mundial, o que acabou sendo bom porque ice borg venceu cinco vezes consecutivas o torneio de wimbledon. confesso que uma ponta de culpa, uma velha e companheira culpa, registre-se, me invadiu por ter sido tão volúvel, afinal, como eu acabara de descobrir, dorothy sempre estivera viva enquanto eu trocava seu retrato pelo da patti. mas como eu ia saber? well, eu não estava entendendo nada, de forma que, como se lesse meus pensamentos, cindy, ou melhor, dorothy, me revelou sua história:
_Quando Paul Snider me ligou no dia 14 de agosto de 1980 implorando aquele último encontro eu sabia que ele estava descontrolado, à beira da loucura, capaz dos gestos mais terríveis. É incrível como os homens são fracos e desequilibrados quando se trata de uma separação. Rodei Los Angeles e as agências de talento em busca de uma mulher parecida comigo. Não foi difícil encontrar, sou um tipo muito comum na América, prova disso é que poucos anos depois foram rodados dois filmes sobre a tragédia e não faltaram candidatas ao papel principal. Paguei à moça um dinheiro que ela nunca iria ganhar fazendo pontas em filmes de quinta e a mandei na frente, para testar a reação dele. Fiquei do lado de fora da casa, apreensiva. Quando percebi que o maluco surtou, entrei rapidamente, eu ainda tinha as chaves. Mas era tarde, ele havia estuprado a pobrezinha e atirado em seu rosto, que estava desfigurado. Assim que me viu, meu ex-marido rastejou implorando perdão. Calcei luvas e peguei a espingarda. Ele chorava como um cachorinho, bêbado e indefeso. Coloquei a arma nas mãos do infeliz e puxei o gatilho sem dó, de um jeito que parecesse que ele havia se matado. Por sorte, todos acreditam nisso até hoje. Fui embora com meu crime e com os documentos da falsa Dorothy, já que estava cansada de Hollywood, do Hugh Hefner e do Peter Bogdanovich, o cineasta por quem eu abandonara Snider. Desde então, tenho zanzado pelo mundo sem sossego a bordo dos modernos e confortáveis aviões da United.



a exemplo dele, o primo do ahmed marcara o encontro em um ponto turístico, de modo que foi fácil reconhecê-lo no meio dos coroas de barbas e cabelos brancos do sloppy joe´s, todos participantes do encontro anual de sósias de ernest hemingway. abdul mal apertou minha mão e já foi logo pegando o embrulho, checou o conteúdo rapidamente _ ao que parece, um livro com instruções e orações _ e caiu fora, não sem antes me dar um beijo no rosto, o que levou muitos dos hemingways a pensarem que fossemos gays em key west, igual ao cara da imigração em miami. eu tentei perguntar sobre zuska, sobre a promessa de que eu a encontraria quando concluísse a missão, mas ele não me deu a mínima.
enquanto isso, os hemingways ocupavam todas mesas em intermináveis embates de braço-de-ferro. tive a certeza de que o velho também havia sido um tipo muito comum na américa e fiquei imaginando como seria mais divertida uma disputa de imitadoras de dorothys strattens em concursos de camisetas molhadas. até a mariel hemingway, neta do escritor, poderia participar, afinal ela ganhara o papel da verdadeira loura canadense no filme do bob fosse, o “star 80”, sobre a morte da playmate, quero dizer, sobre a suposta morte, que eu assisti no cine plaza e chorei para caramba.

(trechos do conto "Desterro", escrito em 2005 e ainda inédito)

sexta-feira, 14 de março de 2008

quebra-cabeça

O mundo vai desabando
segue sem prumo
ruindo sob os pés

de cada rachadura
em cada caco que trinca
ecoa um grito seco

o mundo se abre grunhindo
formando nervura rara
intrínseca e tesa



SP/2001

segunda-feira, 10 de março de 2008

grandes ressacas da literatura/mailer

“Mas não consegui me lembrar de quase nada do que fiz depois que me levantei. Deve ter sido um dia como todos os outros. Há uma piada sobre um homem ao qual, em sua primeira visita, o médico pede que descreva sua rotina diária. Ele responde prontamente:
_Eu me levanto, escovo os dentes, vomito, lavo o rosto..._ E o médico interrompe:
_Você vomita todos os dias?
_Oh, sim, doutor. Não é o que todo mundo faz?
Eu era esse homem. De manhã, depois do café, não conseguia acender um cigarro. Era só colocá-lo na boca e me vinha a vontade de vomitar. A dolorosa plenitude de ter perdido uma esposa me envolvia.”

Norman Mailer, em "Os Machões não Dançam".

quinta-feira, 6 de março de 2008

águas turvas



A tristeza dos rios corre em mim
Não a corredeira cristalina
Dos jovens em barcos de borracha

À esquerda do Amazonas
Sou a Macapá solitária
Uma tristeza baça

A tristeza turvada de terra
Um Mississipi´s Blues
Na New Orleans devastada

Um fado que a musa canta
O choro que a boca trava
A foz do Tejo na Almada

O rio às vezes me arrasta
Promove a erosão dos sentidos
Encharca o dia de álcool e angústia

(texto escrito em 2006, em Macapá; ilustrado por muddy waters & sonny boy)

quarta-feira, 5 de março de 2008

um texto de 2000

Obra de Paulo Mendes Campos une 'marginais' crônica e futebol
JOSÉ ALBERTO BOMBIG
DA REPORTAGEM LOCAL
Na família da literatura, a crônica é prima pobre do conto, filha bastarda do romance, amante bissexta da poesia e irmã do jornalismo.
Tem a crônica um hábito que muito irrita os literatos, o de fincar pé no dia-a-dia, nos aspectos comezinhos da vida.
De seu lado, dentro do mundo das coisas sem importância, o futebol _alguém já disse_ é a mais importante delas. Ocupa lugar secundário no jornalismo.
Mas é o futebol capaz de provocar CPIs, como se sabe hoje, calar um país, como se viu em 1950, e nos comover com um drible aplicado por um homem de pernas tortas.
Em "O Gol é Necessário", que a editora Civilização Brasileira fez chegar este mês às livrarias, Paulo Mendes Campos (1922-1991), escritor e poeta nascido em Belo Horizonte, carioca de coração e botafoguense acima de todas as coisas, promove um delicioso encontro entre esses "marginais", futebol e crônica.
Pertencente à Geração de 45, que fez escola na literatura brasileira e contou com nomes do quilate do poeta Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos nunca foi um cronista esportivo.
Talvez por isso seu olhar seja tão oportuno para revelar o detalhe que se esconde por trás dos resultados e dos esquemas táticos dos times.
Escritas para revistas e jornais em um período _anos 50, 60 e 70_ em que o futebol era mais amador e apaixonado, as crônicas antecipam discussões que se tornariam célebres neste final de século.
A que dá nome ao livro, por exemplo, é um manifesto contra a retranca, o defensivismo e o futebol de resultados que hoje predominam nos gramados.
Não há como negar, porém, que a relação estreita entre a crônica e o factual compromete aspectos da obra.
Tivesse escrito neste ano uma das melhores crônicas de "O Gol é Necessário", a que descreve seu amor pelo Botafogo, Paulo Mendes Campos talvez suprimisse o trecho:
"O Botafogo é capaz de quebrar lanças por um companheiro injustiçado pela federação; eu aguardo a azagaia de uma justiça geral".
No ano passado, o Botafogo, hoje dirigido por outros homens, se utilizou do tapetão para prejudicar o nanico Gama. São erros e acertos de quem viveu e descreveu sua época de maneira intensa. Assim também se faz literatura.

terça-feira, 4 de março de 2008

trânsito lento

Os Irmãos Karamazov
Passeando na linha
Pinheiros-Centro

segunda-feira, 3 de março de 2008

trânsito bom

No ônibus
Pinheiros-Centro
Um conto de Tchekhov