segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O sorriso do João

Bem mesmo, eu só me lembro da chuva, muita chuva, dessas do interior, que chegam pelos lados, dando umas lambadas ardidas na gente, com um cheiro forte de mato e de terra. Muito louco. Todo o resto é barro, um extenso lamaçal, terreno escorregadio e pegajoso da memória. Mas isso não o interessa, não é mesmo? Como dizem nos interrogatórios, vamos aos fatos. E contra eles, não há argumentos, sentenciarão ao final os homens do raciocínio límpido. De minha parte, antecipo o contra-argumento: há as histórias. É uma delas que tentarei contar agora, revolvendo a água turvada destes últimos dias para recolher o que ainda flutua e tatear o lodo em busca do que quer se esconder.
Foram quase oito horas de viagem para chegar até a fazenda. Um caminhão carregado de combustível, outro de tomates, um fusca e duas camionetes transportaram meu corpo magro, minha cabeleira suja e a mochila velha. Apesar de o Júnior ter viajado com o pessoal da faculdade logo na sexta-feira, muita gente também caiu na estrada no domingo de Carnaval. Quem não metesse o dedo para arranjar carona aquela manhã perderia os dois últimos dias do festival, que não tinha porra nenhuma a ver com a folia, pelo menos não com a folia das ruas e dos salões. Meu lance e o dessa moçada era ver o João na segunda-feira. Então, na rodovia, motorista gente fina parava e logo cinco ou seis caronistas enfiavam o rosto na janela. Aí, era quem entrasse primeiro, cada um por si mesmo.
Viemos trocando idéias sobre o que pintasse, o que rolasse de assunto. Uns também colocavam na roda um cantil com cachaça. Outros, um pedaço de sanduíche, de bolo integral. Com sorte, pintava até um baseadinho, isso, é claro, dependendo da boa vontade do motorista de fazer vista grossa ou de participar dando uns pegas. Foi uma viagem, literalmente. Acho que ninguém desse pessoal está mais na fazenda ou nas imediações, todo mundo deve ter caído fora na Quarta-feira de Cinzas. Também não me lembro dos nomes. Muito fumo e muita cachaça, desde o início. Além da chuva, é claro, que deixava a gente com a impressão de que tudo estava embaçado.
Chegamos tipo no final da tarde. Fui direto para a fazenda, tentar descolar um canto em uma barraca de algum camarada ou de alguma alma caridosa, mas, nessa minha primeira noite, acabei dormindo ao relento mesmo, enrolado na lona que a mulher de um camarada me descolou. Quer dizer, praticamente nem preguei o olho. Também nem vi os shows direito. Pela manhã, voltei a procurar o Júnior, agora com mais calma, percorrendo o imenso pasto de cima a baixo e até mesmo enfiando a cabeça dentro das cabanas. A mesma figura que me arranjara a lona disse que ele tinha se mandado para Bauru naquela tarde, com uma turma da região, atrás do João. Fiz o mesmo.
Não foi difícil encontrar o hotel Vitória Régia. Mas não vi nem o Júnior nem o João lá, ainda que o mensageiro tivesse me garantido que ele, o João, estava na cidade havia dois dias e tinha até pedido para deixarem um carro preparado na garagem. Eu nem sabia que ele dirigia, achei que matasse o tempo trancado no quarto, tocando violão, fazendo yôga e fumando maconha, mais nada além disso. Há certos tipos de homens que não gosta de guiar veículos. Achei que ele fosse um desses. O local estava cheio de curiosos, viajantes e artistas. Ficamos lá até o início da noite, quando me juntei a um grupo de jornalistas e voltei em uma kombi para a fazenda Águas Claras, para a quarta noite do festival, a esperada segunda-feira do show do João. Tive a impressão de vê-lo dirigindo um dos carros que nos ultrapassou na estrada, mas acho que era piração. Quando chegamos, os primeiros shows já estavam rolando e um dos meus novos amigos da perua me botou um naco de LSD na boca.
Essa noite foi a de chuva mais forte, parecia que o mundo ia acabar. A iluminação era fraca e eu procurava o Júnior cutucando as pessoas, mas só dava de cara com gente atolada na terra, tentando fumar ou mamando cachaça. Uma briga estourou, acho que era uma briga, as pessoas se afundavam no barro ou tentavam escapar com o vento cortando na cara. Eu via o palco bem de longe, a galera correndo para botar plásticos e lonas em cima dos equipamentos de som. Tive um acesso de risos que deve ter durado horas e me agachei no meio de uma touceira de capim para sentir o cheiro do mato e da bosta de vaca. Foi quando encanei que aquilo parecia um campo de batalha, com a diferença de que eu não sabia quem era o inimigo. Fiquei com muito medo e tive mais vontade ainda de encontrar o Júnior ou de ouvir o João, que tocaria dentro de algumas horas, cantar “O Amor, o Sorriso e a Flor”. Pensar nisso era o que me acalmava, junto da pinga que eu ingeria em quantidades industriais. Então, apaguei, total. Só no dia seguinte, descobri que o show do João havia sido adiado por causa da chuva. Menos mal, pensei, afinal eu estava lá para ouvir o que ele e o Júnior tinham a dizer.
Quase recomposto, tomei um copo de café e comi um sanduíche de queijo, o suficiente para recomeçar a beber e a fumar. As apresentações da noite anterior tinham sido transferidas para a tarde daquele dia, a Terça-feira Gorda, então, a festa começou cedo. No meio do pasto, curtindo o som de sei lá quem, dei de cara com um grupo de conhecidos da faculdade de Filosofia e perguntei do Júnior. Antes de responder, eles quiseram saber por que a gente tinha brigado na festa do Dunguinha, ainda em São Paulo, na noite de quinta-feira. Respondi que eu também não sabia, achava que era por causa de uma bobagem de uma discussão sobre a ética em Espinoza ou sei lá o que. Mentira, o motivo era o namoro dele com a Fernanda. O Júnior e eu morávamos na mesma república, dividíamos o mesmo quarto fazia dois anos, éramos inseparáveis até ela aparecer com aquelas porcarias de incensos e vestidos indianos, e Ele praticamente se mudou para a casa dela.
Foi nessa hora que alguém chegou e disse “acabei de trombar o Júnior em uma barraca atrás do palco, ele tá esperando o João”. Eu sabia que ele faria isso, só não tinha pensando na possibilidade antes. O Júnior tentava imitar o João no violão, na yôga e na maconha. Fiquei feliz por um momento e saí esbarrando em quem estivesse na frente, deslizando no lamaçal. Foi quando a chuva aumentou de novo, cheia de força e daquele cheiro de mato e de terra que eu falei no começo. Parecia um sonho: água, barro, meu pé atolando fundo, um monte de gente na frente, um segurança, dois seguranças pensando que eu queria invadir o palco, eu me desvencilhando deles, o ácido do dia anterior batendo de novo, meu coração batendo mais rápido, a pinga com mel e limão encharcando minha cabeça, o fumo, o zíper da barraca, a Fernanda de quatro e o Júnior em cima dela. Os dois rindo da minha cara. É, acho que estavam rindo da minha cara. Definitivamente, estavam rindo da minha cara.
Fechei o zíper e saí desnorteado. Fiquei um tempo tentando pôr as idéias no lugar. Até que passei a mão em uma pedra grande, com umas ranhuras feitas pelo tempo, louca, parecia artesanato que os hippies vendiam. Me deu outro branco. Voltei. Chamei o nome dele. A vagabunda tinha saído atrás de fumo ou de birita. Assim que ele me olhou nos olhos, desferi um único golpe. Pensam que ele tomou tanta droga que caiu de cabeça na pedra.
Como disse, essas lembranças chegam igual a flashes. Deixei o corpo arrebentado no barro do fundo da barraca e ouvi dizerem que o show do João havia, de novo, sido cancelado. Dessa vez, para sempre. Não havia condições de ninguém cantar com aquele temporal, muito menos o João.
Minha roupa estava toda suja de sangue e de lama, uma massa marrom avermelhada no peito que formava um desenho psicodélico muito louco. Saí andando e parei de novo em Bauru, de novo na porta do hotel, madrugada alta. Acho que foram uns 30 quilômetros de caminhada. Fiquei imóvel como uma estátua de barro, até um farol me cegar e me obrigar a sair da frente do portão, metendo a mão na cara para tapar os olhos. Quando as tirei, o carro estava a meu lado. Então, o João Gilberto me deu um sorriso lindo, acho que era o João Gilberto, ajeitou os óculos e arrancou lentamente na noite fresca, com esse cheiro de terra que a chuva do interior tem. Definitivamente, era o João Gilberto. Muito louco. Ele saiu para respirar. Fez bem.

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