quinta-feira, 5 de março de 2009

minha alegria é triste

Eu praticamente havia me esquecido de como é chato levantar vôo pela manhã, o gosto azedo da noite mal dormida ainda na boca, o corpo doído, a triste perspectiva de que as horas no avião serão apenas o começo de um longo e cansativo dia de trabalho. Todo esse mau humor em contraste com os sorrisos pré-pagos das comissárias e comissários. É claro,tudo pode mudar se você estiver embarcando para tomar mojitos em alguma praia do Caribe, mas não era esse o meu caso.

Airbus A-319 lotado; portas em automático; atenção tripulação, decolagem autorizada; e eu folheio uma dessas revistas distribuídas gratuitamente pelas aéreas. Mórbida coincidência, ela trazia breves perfis de dois suicidas: Hugo Bidet (1934-1977)e Assis Valente (1911-1958). Não deixa de ser engraçado, cento e poucas pessoas espremidas sobre um enorme tanque de gasolina desafiando a lei da gravidade, pensando em permanecer vivas, enquanto o editor da publicação em questão nos brinda, nos distraí, digamos assim, com a história daqueles que por conta própria abriram mão do direito de continuar respirando.

Depressões deixadas de lado, passei o vôo anotando as canções que conheço de Assis Valente. Conhecer nesse caso significa pelo menos cantarolar um refrão. "Fez Bobagem", "E o Mundo não se Acabou", "Brasil Pandeiro", "Boneca de Pano", "Boas Festas", "Camisa Listrada" e "Alegria" _as duas últimas as músicas alegres mais tristes de toda a história!

"Camisa" é carregada daquela euforia que costuma acometer os desesperados, talvez a mesma que tenha acompanhado Bidet ao longo de sua vida na Banda de Ipanema. Para quem não conhece ou não se lembra, é aquele samba do sujeito que despiroca em um Carnaval. Nunca li a biografia de Assis Valente, conheço algumas histórias colhidas em mesas de bar, programas de televisão, jornais e revistas. Há vários relatos de que ele era gay e não convivia bem com a sociedade da época. O samba soa como expressão de sua angústia, não no que diz respeito à brincadeira de se travestir de mulher, óbvia demais para o compositor. Mas há algo de revelador e simbólico no verso "tirou o seu anel de doutor para não dar o que falar":

Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí
Em vez de tomar chá com torrada ele bebeu parati
Levava um canivete no cinto e um pandeiro na mão
E sorria quando o povo dizia: sossega leão, sossega leão

Tirou o anel de doutor para não dar o que falar
E saiu dizendo eu quero mamar
Mamãe eu quero mamar, mamãe eu quero mamar

Levava um canivete no cinto e um pandeiro na mão
E sorria quando o povo dizia: sossega leão, sossega leão
Levou meu saco de água quente pra fazer chupeta
Rompeu minha cortina de veludo pra fazer uma saia
Abriu o guarda-roupa e arrancou minha combinação
E até do cabo de vassoura ele fez um estandarte
Para seu cordão

Agora a batucada já vai começando não deixo e não consinto
O meu querido debochar de mim
Porque ele pega as minhas coisas vai dar o que falar
Se fantasia de Antonieta e vai dançar no Bola Preta
Até o sol raiar


O mesmo traço melancólico/expansivo também aparece em "E o Mundo não se Acabou", um pouco mais divertido e que também poderia ser chamado de melô da ressaca moral:



Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar
Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar
E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada
Acreditei nessa conversa mole
Pensei que o mundo ia se acabar
E fui tratando de me despedir
E sem demora fui tratando de aproveitar
Beijei na boca de quem não devia
Peguei na mão de quem não conhecia
Dancei um samba em traje de maiô
E o tal do mundo não se acabou
Chamei um gajo com quem não me dava
E perdoei a sua ingratidão
E festejando o acontecimento
Gastei com ele mais de quinhentão
Agora eu soube que o gajo anda
Dizendo coisa que não se passou
Vai ter barulho e vai ter confusão
Porque o mundo não se acabou


Certamente, são dois sambas com lugar cativo nas boas listas do gênero, um gravado por Aracy e outro por Carmem Miranda, a grande intérprete de Assis Valente, conforme a maioria dos críticos afirma.

Nenhum deles, no entanto, se compara a "Alegria" (parceria com Durval Maia, 1937), na interpretação de Orlando Silva. A voz do maior cantor brasileiro sublinha o que há de mais secreto nesse samba: a tristeza disfarçada de alegria.

"Vou cantando fingindo alegria para a humanidade não me ver chorar" diz muito também sobre Orlando Silva. Revisitado, o verso poderia ser o "Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita" de Caetano Veloso.

Se Jackson do Pandeiro quis juntar chiclete como banana, Assis Valente é o poeta do samba que misturou _e infelizmente tomou_ guaraná com formicida.


Alegria
Pra cantar a madrugada
As morenas vão sambar
Quem samba tem alegria

Minha gente
Era triste amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer

Salve o prazer
Salve o prazer

Da tristeza não quero saber
A tristeza me faz padecer
Vou deixar a cruel nostalgia
Vou fazer batucada de noite e de dia

Esperando a felicidade
Para ver se eu vou melhorar
Vou cantando, fingindo alegria
Para a humanidade
Não me ver chorar

Alegria
Pra cantar a batucada
As morenas vão cantar
Tem samba tem alegria

Minha gente
Era triste amargurada
Inventou a batucada
Pra deixar de padecer

Salve o prazer
Salve o prazer



ps: é uma pena, mas não há no youtube um vídeo de alegria, que foi gravada por Vanessa da Mata recentemente. Na Rádio UOL dá pra ouvir: http://app.uol.com.br/radiouol/linklista.php?playlist=Orlando_Silva#

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