segunda-feira, 15 de junho de 2009

las nieves del kilimanjaro

É recomendável ir embora de Paris? Não, não creio que seja muito. Para a mulher que acompanha o intrépido Harry em As neves do Kilimanjaro não é nada. Referindo-se à perigosa África na qual penetraram, ela diz a Harry num momento do relato de Hemingway: "Quisera não ter vindo a este lugar, em Paris não teria acontecido nada disso, poderíamos ter ficado lá". Essa mulher, ainda que apenas por seu caráter leviano e porque não lhe agradava nada sair de Paris, me lembrava às vezes Kikí, a única pessoa deste mundo que sei com certeza que quis me assassinar.
As neves do Kilimanjaro é um relato no qual Hemingway nos conta, de forma elíptica, que já vira as orelhas do lobo, que vê um presságio de morte nos cumes nevados dessa orgulhosa montanha, "cujo cimo oeste é chamado pelos masai de A casa de Deus". Hemingway estava convencido de que as neves do Kilimanjaro, que identificava com a morte, eram definitivas, perpétuas. Nós também estivemos convencidos disso até há bem pouco. Em meio a um mundo acelerado em que tudo se transforma, era confortável saber que a morte, como a neve sobre o cume do Kilimanjaro, estaria lá sempre intocável, deliciosamente fria e estável. Sem dúvida, toda essa serena segurança na eternidade da neve desses cumes africanos se desfez há pouco tempo quando soubemos que dentro de vinte anos já não haverá nem rastro delas no Kilimanjaro. Trata-se de uma notícia do século XXI equiparável a outra do XIX, parecida com aquela sobre a morte de Deus que em seu momento difundiu Nietzsche.
Dentro de vinte anos morrerão as neves eternas do Kilimanjaro. Pergunto-me o que teria dito Hemingway se pudesse se inteirar disso que agora sabemos, quero dizer, de que depois de Deus será a Morte quem morrerá. Lembro de Hemingway com sua mulher fotografando na África, com o majestoso Kilimanjaro ao fundo, sua mulher Mary mirando a câmera com uma escopeta. E lembro dele também em outra fotografia africana, junto do grande aventureiro Philip Percival, cuja valentia ele tanto admirava.
"Harry olhou, e tudo o que pôde ver foi o cimo quadrado do Kilimanjaro, amplo como o mundo; gigantesco, alto e incrivelmente branco debaixo do sol. Então soube que era para lá que iria."
Havia em Hemingway uma maneira muito valente e digna de ir em direção à morte, em direção aos cumes nevados. É evidente, contudo, que, no caso de que dentro de vinte anos lhe fosse possível voltar ao mundo, se tornaria impossível voltar a escrever isso de "então soube que era para lá que iria", pois nestes tempos o espaço que deu título ao seu relato, esse lugar de silêncio e imponente clima de altitude ("lá que iria"), ao encontrar-se sem suas neves perpétuas, não será o mesmo lugar, não será a Morte.
Dentro de vinte anos, teremos de ir a Paris em busca de algo mais eterno, dar assim razão a essa mulher do relato de Hemingway que dizia que não era recomendável deixar a cidade. Parece-me que ela, apesar de seu caráter leviano, soube intuir muito bem que Paris, diferentemente das sentenciadas neves do Kilimanjaro, será sempre imortal, nunca terá fim. Por que será que é verdade, senhoras e senhores, que Paris nunca terá fim?



Enrique Vila Matas, em "Paris não tem fim" (ed. Cosac Naify), tradução do Joca Terron

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