terça-feira, 29 de janeiro de 2008

purificções/manifesto literário

A verdade é que, se a gente parar para questionar a imbecilidade de tudo o que é levado muito a sério, não faz nada bem feito. Eu não sou assim, eu vou fundo. Por isso, logo após o Jorge ter me dito “cozinhar é cortar”, tomei aquilo como um mandamento e, é claro, comprei um excelente jogo de facas, francesas, lâminas de aço, seis modelos: legumes, carnes, peixes, desossadora, cutelo e multiuso.
Sempre tive essa mania, se resolvo nadar, adquiro o melhor equipamento e vou até a melhor piscina. No ano passado, apenas seis meses depois de ter iniciado meus treinamentos, completei uma travessia marítima de cinco quilômetros. Naquela época, meu analista sempre falava que eu precisava praticar esportes porque sou obsessivo com traços compulsivos e que uma atividade física me faria bem. Mas, quando escolhi a natação, ele não gostou. Até eu fui obrigado a concordar, passar horas, solitário, com a cabeça enfiada na água repetindo os mesmos movimentos e o mesmo trajeto é algo no mínimo estranho. Nem por isso desisti. Eu amo nadar.
Meu analista não se deu por vencido e afirmou que nós, os obsessivos, temos algum talento, digamos assim, para coisas que demandem alto grau de perfeição, mas que envolvem dose igualmente elevada e essencial de criatividade, tipo a cozinha e a literatura. Para me convencer, ele preparou uma lista com os nomes de muitos chefs e escritores consagrados que, segundo suas pesquisas, apresentam algum traço de obsessão ou compulsão. Eu sempre odiei as aulas de português e de literatura e comecei a me aventurar nas panelas. É claro, adquiri em um desses canais de televendas um magnífico jogo de oito peças. Tinha certeza de que estava indo bem. Até o Jorge, crítico gastronômico consagrado, vir aqui em casa e me ver de avental, com a barriga no balcão, picando cebola e chuchu para fazer um prato que eu havia batizado de risoto Carmen Miranda, afinal, eu tentava ser inovador.
Pois bem, o Jorge disse na hora que estava tudo errado, que o corte dos legumes, no caso a cebola e o chuchu, não estava à altura da consistência do prato, no sentido contrário às fibras, e deixaria a refeição com um aspecto horrível. A minha mulher acompanhava a cena e ficou zangada, argumentando que eu poderia até não saber cortar, mas deixava tudo muito gostoso e tinha criatividade para inovar nas receitas. Isso, na opinião dela, era o que de fato importava para um aspirante a cozinheiro que usava as panelas para se distrair.
O Jorge rebateu. Segundo ele, os pedaços eram desproporcionais e não tinhamharmonia e isso levaria, invariavelmente, o degustador para longe da história que aquela combinação de alimentos _leia-se arroz arbóreo, cebola, vinho branco seco, caldo de peixe, camarão, cebola e chuchu_ queria contar. Em seguida, ele comparou os risotos aos contos, disse que ambos precisam causar um impacto quase imediato no apreciador, vencendo-o por nocaute, caso se tratasse de uma luta de boxe. Essa tese havia transformado o Jorge no crítico gastronômico do momento, com coluna em revistas e blog na internet.
_A combinação não está boa, o corte está péssimo e, além disso, tem pedaços demais, ele enrola muito, a gente demora para entender que história ele quer contar, se é que quer contar alguma. Todo prato tem de transmitir alguma coisa, é o que eu sempre digo_, explicou ele.
_Para mim, está bom. Os pratos dele são saborosos, têm conteúdo e contam muitas histórias porque ele aprendeu com a mãe dele, que aprendeu com a mãe dela e assim por diante. Todas as receitas têm o seu valor. Ele tem é que continuar cozinhando. Você nunca cozinhou nada, só sabe falar do trabalho dos outros_, disse a minha mulher.
_Não interessa. Cozinhar, antes de qualquer outra coisa, é cortar os alimentos”, decretou o Jorge, parafraseando um chef famoso que eu não lembro o nome.
Ela estava furiosa e pretendia levar adiante a discussão, mas eu cortei rente, com o perdão do trocadilho:
_Ele está certo, assunto encerrado.
Desde então, passo o dia com a faca na mão, em frente ao cepo, fatiando tudo: legumes em tiras, em rodelas, triangulares, em forma de estrelinha; salsa e cebolinha que parecem pó; carne desfiada no sentido das fibras, cortada em medalhões, em escalopes, em bifes e em cubos; abobrinha batidinha na faca; frango separado nas juntas e à passarinho. Fui obrigado a contratar uma cozinheira pra aproveitar o resultado do meu trabalho e passei a colaborar semanalmente com um orfanato das imediações de minha casa.
Praticamente abandonei a natação e não dou as caras no escritório. Meu sócio está puto. Paciência. Mês passado, venci um grande desafio, superei a penúltima barreira do mundo das facas, a milenar arte do sashimi. Devo dizer que o cônsul japonês, aqui trazido pelo Jorge, chorou ao saborear os nobilíssimos pedaços de atum e salmão. Aquilo me comoveu. Se eu fosse um poeta, faria até um haicai, pensei em algo como:

Japonês no ocidente
finas fatias de peixe
shoyo de lágrimas

Mas, como não sei escrever, eu corto. Acho que nem preciso dizer que tive alguns acidentes de trabalho. Ontem, a ponta do meu dedo indicador se transformou em uma lembrança, um borrão no exame datiloscópico da Polícia Civil. O importante é que aprendi direitinho, talvez eu seja hoje o melhor picador do mundo. Quem sabe? Isso só a disputa que está sendo organizada pelo guia de culinária com auxiliares de cozinha irá responder. Peguei muito gosto pelo trabalho, tanto que passei muito tempo sem fritar um mísero ovo. Mas e daí? O Jorge sempre me socorria:
_Cozinhar é cortar!
A única coisa ruim dessa história toda é que a minha mulher ficou triste, disse que eu estava meio pirado, alienado, sem criatividade, e foi embora. Não é verdade. As sessões de análise com os conselhos do doutor Lorran finalmente deram resultado. Eu transformei a obsessão em algo útil e criativo: trabalhei com vontade na invenção de uma faca para humanos. Um sucesso. Superei a última barreira. Os policiais podem continuar investigando que nunca encontrarão tantos e tão pequenos pedaços do crítico gastronômico no fundo da represa Guarapiranga. Tenho certeza de que ele ficou muito orgulhoso. Talvez agora eu cozinhe um pouco.

5 comentários:

Joca Reiners Terron disse...

"ontem a ponta de meu indicador se transformou em uma lembrança" é genial; idem, a receita de picadinho logo abaixo; e não dá pra tirar essas maiúsculas, não?

Abrazo!

Ivana Arruda Leite disse...

Beto, que demais! Uma vez eu lembro que eu li um conto seu e te disse que tinha muita coisa pra cortar. Rapá! Isso que é aprender a lidar com facas. Beijos

beto bombig disse...

Porra,

é desconcertante receber elogios de dois mestres/ídolos. Vou encarar como estímulo.

Joca, my old brother, vou tirar as maiúsculas. Obrigado.

Ivana, você não tem noção de como aquele toque me ajudou! Foi lá que eu vi que enrolava muito.

.leticia santinon disse...

Adoreiiiiiii!!!

Seu blog começou bem, que continue assim.

Colocarei um link lá no meu.

beijo...

...e vá cozinhar! hehe

FABRICIO RAMON disse...

Tudo isso é muito engraçado, mas ao psicografar Jorge, o crítico, pude ver que este Bombig não aprendeu a lição: os pedaços ficaram com um consistência meio, digamos natureza morta, pelo menos foi o que ele me assegurou. Pai Creuso