sábado, 18 de outubro de 2008

o abismo das esquinas



Na canção "São João Xangô Menino" Caetano (ou Gil, em "Montreux ao Vivo") diz: "fogo fogo de artíficio, de beleza sem razão".
Eu peço que tomem conta do menino, Xangô, ai são João Xangô menino, e vejo o rojão rojão explodindo explodindo no céu de São Joaquim da Barra.

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Em "Trilhos Urbanos" (1979) Caetano anda de bonde e diz que tudo é "bondever".
É bondeouvir.

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E aí chega o "Velô", o disco de 1984, que eu ganhei de Natal. Começa pelo encarte, em formato revista, com o poema concreto "Pulsar", do Augusto de Campos, na contra. Caetano músicou, preencheu de silêncio a palavra.
Onde quer que ela es te ja.

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"Velô" é uma declaração de amor à línguagem. Numa época em que a música brasileira ainda se preocupava com isso. E aí é preciso reconhecer a influência de Paulo Leminski na vida/obra caetanística. Numa carta de setembro de 1978 ao poeta Régis Bonvicino, o poeta comenta o "Muito" (o do fogo fogo de artifício e de "Cá Já" e "Sampa"), diz que está ouvindo o disco o dia inteiro, faz elogios etc...
Caetano foi até Curitiba.
Caetano gravou Leminski e sua "Verdura" no "Outras Palavras" (1979).

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"Velô" tem "O Quereres", aquela que diz "onde pisas o chão minha salta/e ganha liberdade na amplidão", fala da "dulcíssima prisão" dos amores.
Não é fácil traduzir o desejo. Ele traduziu.

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1984. E o disco termina com ... Adivinha? "Língua": "Flor do Lácio sambódromo/Lusa América Latim em Pó"; antes rola um Ritchie humilhando Bowe em "Shy Moon", a canção também da lavra caetanística.
E assim se foi 1984. E assim eu volto quando quero a 1984.

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Vai que eu não pare de ouvir Caetano agora? E então eu recuo até o "Araçá Azul" (1973) só para ouvir o bolero "Tu Me Acostumbraste", e aí, na segunda parte ele começa a cantar de um jeito como se tivesse com o nariz tapado, ou, sei lá, atrás da porta da cozinha, com uma bacia ao lodo do rosto, tipo auto-falante, brincando de rádio, brincando de imitar as coisas que ouvia no rádio quando era pequeno, Célia Cruz, quando era um niño de Jesus; e eu me lembro da minha mãe escolhendo arroz e da bacia atrás da porta daquela casa em que minha irmã nasceu, onde eu cantava Roberto Carlos, e minha mãe dizia que eu tinha os olhos fundos como os dele;
onde eu perfeitamente podia ter dado à minha irmã o nome de Maria, talvez Bethânia.

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Vai que eu volte outra vez para o "Velô"? Vai que eu ouça o "Homem Velho", em "memória de meu pai, a Mick Jagger e a Chico Buarque, que agora tem 40 anos"? Vai que eu acredite que "a solidão agora é sólida, uma pedra ao sol"?
Vai que eu me levante agora para dar um beijo no meu pai, "para deixar a vida e a morte para trás"?

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