domingo, 6 de julho de 2008

sempre aos domingos

Lisboa, 14 de Março de 1916


Meu querido Sá-Carneiro:
Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental _uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto _que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurda da frase falará por mim.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias de alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a criança triste em que a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia 14 de Março, às 9 horas e 10 da noite, minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu seqüestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos onde pedem; estão enrolados muito alto; e assim nem a idéia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do “Marinheiro” ardem-me os olhos de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com brochura a descoser-se.
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena _cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde das folhas.
Foi por isso que o príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão grande vontade de chorar.
Pode ser que, se não deitar esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demora a copiá-la à máquina para inserir esgares dela no “Livro do Desassossego”. Mas isso nada roubará a sinceridade com que a escrevo, nem a dolorosa inevitabilidade com que a sinto.
As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.
Isto não é bem loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferente destes.
De que cor será sentir?
Milhares de abraços do seu, sempre seu muito seu

FERNANDO PESSOA

PS: Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanhã, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si próprio que dele são tão características.
Você acha-me razão, não é verdade?

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