segunda-feira, 3 de novembro de 2008

empirismo

A primeira constatação: eles são todos, todos, muito magros.

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Decido caminhar um pouco, ver e ser visto, são as regras, escreveu alguém que deve estar aqui, vendo e sendo visto. Antes, uma taça deste belíssimo espumante que vai me dar uma queimação filha-da-puta no estômago, mas é imperdoável circular de mãos vazias pelos maviosos salões deste prédio.

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Uma moça. É cantora, eu a reconheço, apareceu dia desses na televisão, no especial sobre a nova geração que reinterpreta clássicos do samba e da MPB. Minha mãe sempre diz ter lido em uma revista que a televisão engorda as pessoas.

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A primeira dúvida: a nova geração não consegue fazer nada novo?

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Os cabelos da cantora estão presos em um coque que deixa ver a borboleta pousada para sempre na sua nuca ossuda. Ao lado dela está o guitarrista, também da nova geração. Ele veste uma camisa de time de futebol, tamanho infanto-juvenil, e um calçado de jogar futebol. Duvido que goste de futebol.

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A segunda constatação: eu torço para um time diferente do dele.

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Os canapés estão ótimos, esta poderia ser a terceira constatação, mas é uma frase que o artista plástico encaminha ao dono da festa. Eu tomo nota, mesmo sabendo que não há nada de poético ou inédito nela, mas, assim, chapada ela diz muito sobre a noite: os canapés estão ótimos. Significa: os canapés estão ótimos.

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Decido recarregar a taça de espumante. Começo a sentir a queimação, mas devo estar auto-sugestionado. Pego envergonhado um canapé de ovas de peixe sobre salmão defumado. Mediano. Um conceito médio, assim como impressões e gostos, nunca pode passar por uma constatação. Fiz bem em não ter tomado nota, constato.

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O maestro é o mais contido entre todos os presentes, em todos os aspectos. Usa um paletó preto sobre a camisa branca e o jeans desbotado. Sua calva reflete o enorme lustre do mavioso salão. Seus sapatos de couro _marrons para não desrespeitar as etiquetas_ rangem e estalam sobre o mármore. Eu o sigo até o banheiro.

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Uma dúvida: estou sendo visto?

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Se eu fosse um desses babacas, pensaria algo na linha é possível morar umas três famílias só neste banheiro. Mas eu não sou, não desses. Então, fico tentando ouvir o que o maestro precocemente calvo e rigorosamente vestido fala no telefone celular.

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De volta ao salão, luzes se acendem. Entra o ator de teatro, cinema e televisão. Só os jornalistas, colunistas e amigos vão até ele. Os demais fingem indiferença. Eu finjo que tenho que passar ao lado dele, como se aquele fosse o único caminho possível para chegar até onde está o escritor.

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O ator tem belos cabelos, mas eles não estão em um coque. Usa blazer jeans sobre camisa preta fora da calça cinza. Nos pés, um tênis de jogar futebol. Eu não duvido que ele jogue porque, apesar de magricela, claro, ele tem as pernas fortes e um jeito de quem privilegia os raciocínios do corpo sobre os da mente.

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O ator ganha um bom dinheiro fazendo novelas, mas ouço ele dizer viva Beckett. Dúvidas: seria Becker? Ou: se eu não fosse ator, daria um bom beque?

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Uísque é o que toma o diretor de cinema _barba por fazer, jaquetão, pele bronzeada, cabelos desgrenhados e mãos grandes_ enquanto conversa com o documentarista _cabelos bem aparados, pálido_, que toma água e limpa os óculos na camiseta de algodão. O diálogo enche de admiração e esperança os olhos da atriz enquanto ela esvazia mais uma taça de espumante, as escápulas como asas fora do vestido, as saboneteiras onde morariam três famílias.

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Terceira constatação: o escritor não está onde eu achei que estivesse.

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Agora o ator está sendo abordado por dois rapazes que dirigem a ele perguntas de duplo, talvez quádruplo sentido. Ele tenta ser mais esperto do que a dupla.

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Outra dúvida: seria a competição para saber quem é mais imbecil?

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Avisto o jovem editor, que conversa com a moça que apresenta um programa sobre artes, literatura e espetáculos no canal pago que mostra especiais com a nova geração interpretando os clássicos do passado ao som dos ruídos distorcidos produzidos pelo guitarrista magro que não gosta de futebol.

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Tenho a impressão de que o editor me reconhece mesmo sem me conhecer. Seu olhar soa como eu manjo os da sua laia, quem será que te convidou?

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Encontro novamente o maestro. Ele me olha com cumplicidade.

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Quarta constatação: estou sendo visto.

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Ouço parte da conversa do jovem editor com a apresentadora do canal jovem. Eles falam sobre vinhos e pratos.

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Quinta constatação: a TV engorda as pessoas.

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Nova dúvida: se todos parecem gostar tanto dos prazeres da boa mesa e gastam seu tempo em exercícios intelectuais e de criação artística, como conseguem ser tão magros?

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Não consigo encontrar a porra do escritor, e os garçons já começam a recolher os canapés sob os olhares indiferentes de tanta gente magra. Vou atrás do editor, mas percebo que ele já se retira junto com a apresentadora.

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Sexta constatação: meu estômago está queimando.

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Finalmente avisto o homenageado sentado em um sofá acompanhado da escritora e dos jovens e magros escritores da nova geração. Tomo posição e saco o bloco do bolso: calça e sapatos pretos, sem blazer, camisa azul dobrada nas mangas.

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Fico esperando o velhinho se levantar: magro, escrevo.

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Me aproximo do anfitrião, que é dono do banco no qual eu tenho uma dívida que não caberia nas saboneteiras da atriz, e digo: os canapés estavam ótimos!

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Ganho a rua.

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Sétima e última constatação: eu preciso emagrecer.

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