segunda-feira, 26 de maio de 2008

manifesto literário 2

A comida diz muito sobre quem a prepara. Algo inconsciente, eu arriscaria, sem medo de parecer clichê, afinal, não sou um escritor _um aspirante a cozinheiro, talvez. Lógico, como tudo no mundo dos símbolos e das artes, isso ocorre de maneira sutil. Um prato, um conto, uma poesia, são mensagens enviesadas, de remetente conhecido e destinatário incerto. Para os que têm a bênção de poder decifrar este intrincado alfabeto, o que fica ao final do processo é uma verdade literalmente improvável, porém superior, quase metafísica, como a fé.
Uma modesta farofa de banana, companheira perfeita de astros da boa mesa, do badejo ao molho de camarão rosa, do picadinho ao pintado na brasa, não pode ser prova cabal como as cartas escritas por Luísa em “O Primo Basílio”. A combinação da fruta com o pó da mandioca jamais terá efeito de batom na cueca, torpedo telefônico ou correspondência extraviada, desastres que exigem muita conversa, baldes de lágrimas e um buquê de flores para serem resolvidos, mas que o bom Jorge (neste caso, o marido de Luísa) é capaz de perdoar, dando o assunto por encerrado, a página por virada.
Uma comida, um texto, um quadro, martelam, fingem que vão embora da nossa cabeça, das nossas papilas gustativas e, quando a gente menos espera, reaparecem do sobrenatural para encaixar mais uma peça do eterno quebra-cabeça dos signos, processo que os estudiosos chamam pernosticamente de significação. Era nisso que eu pensava enquanto olhava os pedaços do animal espalhados sobre minha mesa _tampo de vidro duplo temperado, 2mx90cm, base de mogno legítimo_ naquela noite em que o investigador Nelson me deu a honra de aparecer para o jantar, conforme meu convite da semana anterior.
Desde o início do inquérito, eu me esforçava para colaborar com a polícia e acabei criando com o tira, glutão e cozinheiro diletante, homem discreto e metódico (por que não dizer? um obsessivo também), certa proximidade. Entre as poucas coisas que sabia a seu respeito estava o fato de ele ser muito suscetível ao álcool. Por isso, assim que levantei a garrafa de sauvignon blanc, ele tampou uma das três taças (a correta, registre-se) com a mão direita.
_Não repare, vou ficar na água.
_Por mim, tudo bem, só acho uma pena esta entrada de cogumelos selecionados, cobertos com molho de champanhe e creme-de-leite fresco, passar tão mal acompanhada.
_Reservo minha cota de álcool para o prato principal_, respondeu Nelson elegantemente.
Acordo selado, não perdi a chance de entretê-lo com temas que me apetecem e que passam ao largo do mundo policial, incluído neste caso o subgênero literário. Falei sobre minha tese da linguagem culinária, do curso de semiótica gastronômica que pretendo criar e da necessidade de concisão nos enredos da cozinha contemporânea. Pedi que pensasse no assunto como uma nova abordagem da epopéia humana na Terra:
_É na comida, nas mesas, não nas folhas, que se escreve a verdadeira história dos povos_, eu disse.
Nelson ouviu tudo impávido, quero dizer, entre uma garfada e outra. Até eu disparar:
_Eu sei o que te traz aqui.
_A comida e o seu convite.
_Também, digamos. Mas sei que você ainda não está convencido, como está o delegado, de que não tenho ligação com o sumiço do crítico gastronômico...
_...e na impossibilidade de conseguir um mandato de busca vim vasculhar sua casa com a desculpa de aprender sobre arte e culinária_, atalhou Nelson.
_Vamos lá, fique à vontade, revire os armários, esvazie as gavetas e, se tiver coragem, as garrafas!_, respondi, erguendo um brinde.
O investigador deu um risinho diante de meu pocket show, mania que carrego dos tempos de menino: pilhado em situação desfavorável ou contrariado em meus objetivos, reverto o placar com uma mistura de ironia, espetáculo e certa agressividade, estratégia que minha mãe condensou na palavra “fusquinha”. Confesso que o expediente tem funcionado bem, apesar de o doutor Lorran dizer que isso é um recurso clássico, porém vazio, dos obsessivos.
O tira, no entanto, era um cara duro. Fez um elogio à qualidade do tempero e só voltou à história do crime, ainda assim, de maneira enviesada, na sobremesa:
_Seu amigo Jorge também tinha teses interessantes. Você parece ter aprendido com ele. Foi a convivência intensa?
Era verdade. Antes de desaparecer, Jorge, o crítico, estava trabalhando em um troço chamado teoria do hipopótamo. De maneira simplificada, era algo mais ou menos assim:
imagine o imenso animal chafurdando em um rio;
a parte que está à mostra, no caso, pedaços do dorso e da cabeça, é o prato que se apresenta sobre a mesa, é a história em primeiro plano que o chef quer contar;
o melhor, no entanto, está escondido, submerso, imenso, atolado em aromas, sabores e narrativas que só a memória consegue desvendar.
_Há peças que não se encaixam..._prosseguiu ele.
_No meu jantar?
_Não, o banquete estava perfeito. No inquérito que o delegado está montando para livrar a sua cara. Um sujeito no auge de uma carreira de sucesso, apesar dos muitos desafetos, não desaparece assim, sem mais nem menos. A única pessoa que convivia diariamente com ele nos últimos meses era você. O fato de não haver um corpo ou uma motivação não lhe tira da condição de principal suspeito.
_Nesse caso, continue fazendo a sua obrigação, investigue_, disse eu, novamente apostando na minha tática do “fusquinha”. E fui adiante:
_Mas não esqueça, obsessivos como você e eu são escravos da angústia quando se metem em alguma busca. Talvez você utilizasse melhor seu tempo se dedicando à arte_, completei, ao despachá-lo no elevador.
Três dias depois, Nelson me respondeu, via e-mail:

“Caro,
conforme você me sugeriu em nosso último contato, tenho procurado deixar de lado as angústias de sempre para refletir com mais clareza sobre a tal linguagem artística. Hoje mesmo, enquanto almoçava aqui ao lado do DP, indagava a respeito de uma suposta sublinguagem culinária, tão em voga ultimamente. Não fosse a fome, juro, nem teria desmanchado aquela combinação de signos, digo, de alimentos, tão perfeita: o feijão marrom, o branquíssimo arroz, duas verdes folhas de alface, ornamentadas com rubras rodelas de tomate e anéis roxos de cebola. E isso servia apenas como acompanhamento aos pequenos pedaços de carne alaranjados, forrados pelo louro e banhados pelas gostas rosas de pimenta. Em cima de tudo, um reluzente ovo estalado. Iuminado pelos raios de sol refletidos na garrafa verde de tubaína, a composição era uma perfeita obra, fiquei com dó de destruí-la, juro.
Mas, por sorte, me lembrei de suas orientações e, veja, percebi que o amigo se contradiz. A arte é algo que se encerra em si, você me ensinou. Já o prato estava ali para ser devorado, tinha a função de matar minha fome. Então, avancei sobre ele amassando, misturando, rasgando. Acho que finalmente aprendi: arte, de verdade, não enche barriga, não é isso? Bendita seja a coisa desprovida de conceito.
Sem mais para o momento,
saudações cordiais
ps1: você tem mesmo um jogo de facas muito bom, além de uma excelente técnica; nunca comi um animal tão bem cortado nas juntas, você é um mestre.
ps2: imagino que você deve se sair muito bem quando o assunto é picadinho.

É como eu disse: no limite, a comida que você prepara é capaz até de denunciá-lo, em um ato de perfeita traição. Eu havia errado (ou não, dr. Freud?) na escolha do prato principal, o leitão esquartejado. Mas é como diria o próprio Jorge na tese do hipopótamo: a história secreta dos pratos se constrói com o não-dito, queira o cozinheiro ou não. O Nelson sabia ler um prato.

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