terça-feira, 8 de abril de 2008

pet friends

Abro a porta e vejo o rastro gosmento que a rã escorreu aos pulos pelo hall.

Tudo bem, amanhã a empregada dará um jeito nisso, penso, enquanto jogo a pasta na cadeira e caminho até o bar improvisado na cozinha;
por enquanto,eu só preciso me manter longe do animal.

Tomo o primeiro uísque e confesso que fico um pouco feliz de ter a rã por perto;
o segundo, me dá vontade de acariciar a pele enrugada e gélida do batráquio, mas ele se esconde entre as garrafas;
após o terceiro, até uma ponta de saudade futura aparece e prometo que amanhã abrirei a melhor de todas as bebidas para brindar a sua memória;
desmaio no sofá com a sensação de que ela repousa embaixo dele.

Engano;
pela manhã, percebo que a rã passou a noite a bisbilhotar, revirou os livros, esquadrinhou as contas, catalogou os discos importados, passeou com os carrinhos de ferro, tirou onda na adega climatizada;
fico puto, inseguro e mal-humorado.

É PRECISO ESCORRAÇAR A RÃ, escrevo no bilhete com instruções à empregada.

Em outros tempos, chamaria meu pai, e ele viria e me daria uma bronca porque homens não podem ter medo de rãs inofensivas;
se estivesse vivo.

Chamaria minha mãe, e ela viria para me proteger, esmagaria o animal com uma vassourada;
se tivesse forças.

Corro dez quilômetros, tomo os cereais e decido perdoar a rã porque tenho certeza de que logo mais ela sairá naturalmente da minha casa.

Mas como?

Se o apê que acabo de comprar em muitas prestações é totalmente à prova de frestas e buracos?

Aliás, por onde ela entrou?

Reescrevo embaixo dos rabiscos na lista de instruções: ACABE COM A RAÇA DA RÃ!

Desisto pela segunda vez da ordem;
a empregada é semi-analfabeta e religiosa, tem um coração bom, não compreenderia minha indignação.

No carro, ouço o coaxar da rã;
será possível?

Não, é claro que não, deve ser alguma peça desregulada do motor, ainda que ele seja o melhor e mais moderno entre os populares;
deixa pra lá, é mais fácil aumentar a música, até porque em uma hora desta a eficiente faxineira já deve, por conta própria, ter sumido com a rã, e, à noite, vou abrir um blue label para comemorar, quem sabe vou chamar a mulher para um brinde;
aumento de novo o rádio.

Antes, no entanto, é preciso trabalhar direito, fazer a minha parte;
é isso: eu faço a minha no escritório, a faxineira faz a dela no apê e expulsa a rã, o servente aprisiona o bicho em um saco plástico, o zelador despeja o pacote na rua, e os lixeiros moem tudo no caminhão, massacram, espremem, escorraçam a rã;
afinal, estou rigorosamente em dia com os impostos, a taxa do condomínio e o salário da empregada.

Mudo de idéia: o melhor mesmo seria se o cadáver da rã chegasse intacto ao lixão, onde uma família pobre poderia usá-lo em uma nutritiva sopa;
ou então a própria faxineira poderia levá-lo embora junto com as sobras do jantar e as camisetas velhas que deixei separadas.

Pego a mulher na casa dela e sigo direto para o restaurante; tomamos um vinho branco e eu quase peço rãs à provençal, sorrio feliz com o meu senso de humor refinado, com a minha inteligência que me permite fazer piadas elegantes dos piores problemas e contratempos;
a moça me admira apaixonada, o chefe me elogiou no trabalho;
a porra da rã deve ter sido eliminada.

Abro a porta e não há sinal de rastros da rã, tudo está em ordem perfeita;
penso que a classe trabalhadora brasileira é a mais eficiente do mundo, além de cobrar pouco;
rio novamente baixinho.

Mostro à mulher os discos importados, os livros na estante, a adega climatizada, as obras na parede e, como prometido, abro o uísque mais caro;
transamos no tapete, no sofá e na cama king size do meu quarto;
ela quer ficar, mas digo que tenho compromissos inadiáveis logo cedo e chamo-lhe o melhor táxi da cidade.

Assisto “A Primeira Noite de Tranqüilidade”.

Vou dormir e sonho com a rã.

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