terça-feira, 15 de abril de 2008

purificções/constelação

A mulher entra no quarto, pendura o casaco marrom e acomoda a bolsa na cadeira de pé palito. Liga o rádio embutido no criado-mudo e se joga sobre a cama, calada.
Sem ter muito a dizer, ele, na poltrona, recorda um texto do curso de pós-graduação (ou de um artigo de jornal, de uma conversa em mesa de bar):
_Nas artes, há os mestres e os inventores. Caetano é um compositor de invenção.
Ela, com ar displicente, responde:
_Tô mais Chico agora.
_Algum motivo especial?
_Sei lá, fases_, corta a mulher.
O homem não desiste, mesmo sabendo que ela está chateada. Quer acreditar que a mulher ainda se choca com performances de arte contemporânea e que a brincadeira na vernissage foi esquecida, mas sente que a história não terminará como ele imaginara. É claro, um autor medíocre sempre erra no final, pensa. Como último recurso, mira o rosto de traços agudos e faz um elogio aos olhos. Cantada antiga e sincera. Como se procurasse uma resposta escondida nos afrescos art deco do teto, ela responde:
_O melhor são os pés.
_Você é mesmo estranha. Quase sempre usa sapatos fechados, não tira as meias nem para dormir.
A mulher sequer sorri. Levanta-se como um felino que vai da inania ao bote fatal em milésimos de segundo.
_Em quase tudo aqui há um sinal do tempo_, desconversa ela ao retornar do banheiro, onde acaba de apreciar as machas verdes incrustadas no dourado das torneiras.
_Uma forma elegante, apesar de clichê, de criticar a decadência do local_, comenta o homem.
Ao tentar beijar o peito branco, ele é imediatamente contido pelas gotas de vinho tinto que salpicam o lençol.
_Deixa, não se preocupe, vai ficar manchado de tempo. Do tempo em que fomos felizes_, diz ela, agarrando-o entre as pernas.

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