sexta-feira, 25 de abril de 2008

autum rhythm

Os dois se conhecem naquele bar que tem um pôster do Pixinguinha logo na entrada e combinam um encontro pela manhã na Pinacoteca, já que ele sempre procurará impressioná-la com truques baratos e falsas paixões (ou é ela quem faz isso?). No museu, eles nem prestam atenção à coleção visitada, preferem fabricar frases espontâneas, armazenar impressões e conceitos para a conversa do almoço, em um restaurante típico das imediações, onde, assim que o casal adentra o salão, o proprietário avança, braços abertos e português claudicante, ao encontro do homem. Bastam poucos minutos e a mulher está hipnotizada pelo senhor de cabelos pintados acaju, aroma de loção pós-barba, dentes de ouro e 90 anos de histórias que dariam um livro.
_Este amigo aqui vai escrever minha biografia_, diz o velho, como se lesse os pensamentos dela.
O homem marca pontos importantes auxiliado pelo grego e, antes da lula recheada e da mousaka aterrisarem na mesa, agradece o companheiro de outras batalhas com um sorriso que somente o drive da cumplicidade masculina é capaz de ler. De seu lado e rodando o mesmo programa, o velho tira o pente do bolso, desliza-o sobre os fios ralos, ajeita o bigode e se diz pronto para que ela aperte sem medo o botão da câmera digital. O flash é uma espécie de senha, e o anfitrião encerrar o número, deixando-os a sós, não se antes beijar a mão da moça.
_Bom apetite_, diz ele, sorridente.
A mulher relembra suas passagens esporádicas pelo bairro na infância, quando ali ainda viviam os judeus, e pergunta se ele vai mesmo escrever a biografia do velho grego. O homem responde que coleciona histórias a cada visita e aproveita para emendar uma que tem como cenário a Segunda Guerra, mas termina avaliando que tudo talvez fique mais interessante em um curta-metragem, pois o personagem e seu habitat estão acima das palavras impressas. Os dois pedem mais vinho para celebrar a convergência de opiniões. Ele nota um leve rubor nas faces de sua convidada. Ela, uma cicatriz no queixo dele.
_Se você quiser, eu posso fazer a cenografia e a iluminação_, diz a mulher.
_Fechado.
Conforme planejado, o almoço transcorre em meio às opiniões de ambos sobre a maneira como o suporte na arte contemporânea se transformou em espaço de convergência para experiências sensoriais e poéticas, sobre o melhor filme de todos os tempos, que nunca irá se comparar a uma grande trepada, e sobre como é bonito o sul da Itália naquela época do ano, além, é claro, de elogios às delícias da culinária grega e brindes aos grandes romances que marcaram o século passado. Terminado o café, ela se lembra que tem a tarde livre e oferece uma carona ao homem. Antes, no passeio pelo jardim de esculturas da Pinacoteca, ele tece novas e pertinentes considerações, dessa vez a respeito da leveza de um cubo de ferro retorcido.
_Você também deveria experimentar as artes plásticas_, ela sugere.
_Eu só sei desenhar casinhas.
_Pode fazer como o Jackson Pollock, que apenas jogava tinta em telas espalhadas pelo chão e é chamado de gênio.
_A única coisa que eu sei jogar com algum talento é merda no ventilador_, ele responde.
A mulher gargalha.
No futuro, descobrirá que não se tratava de uma frase de efeito.

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